junho 04, 2016

Marxismo e Cristianismo


Por Arnaldo Schuler

"Todos os que creram estavam juntos, e tinham tudo em comum. Vendiam as suas propriedades e bens, distribuindo o produto entre todos, à medida que alguém tinha necessidade" (Atos 2.44,45). "Da multidão dos que creram era um o coração e a alma. Ninguém considerava exclusivamente sua nem uma das coisas que possuía; tudo, porém, lhes era comum. Com grande poder os apóstolos davam o testemunho da ressurreição do Senhor Jesus, e em todos eles havia abundante graça. Pois nenhum necessitado havia entre eles, porquanto os que possuíam terras ou casas, vendendo-as, traziam os valores correspondentes, e depositavam aos pés dos apóstolos; então se distribuía a qualquer um ã medida que alguém tinha necessidade" (Atos 4.32-35).

É comum verem-se referidas em apoio do marxismo às passagens que epigrafamos. Cristianismo e marxismo é o assunto que vamos conferenciar.

Questão terminológica

Devemos tratar, preliminarmente, uma questão terminológica. Existe a tendência de sinonimizar marxismo e comunismo. Anuncia um autor que vai criticar o marxismo, e, a certa altura, autoriza-se com a Quadragésimo Anno, de Pio XI: O comunismo considera a produção como fim único da organização social que preconiza. Seus leitores passam adiante a noção: Um dos erros de Marx foi ensinar que a produção é o fim único, etc. Vai-se às fontes, e descobre-se que a produção, para Marx, nem sequer é o fim principal. Mais além, nosso autor afirma que o marxismo nada mais é do que a exploração do proletariado por um sistema de capitalismo estatal — e aponta a União Soviética, provando que lá não se discutem salários, explora-se a mais-valia, não se paga na medida da necessidade de cada um, mas segundo o trabalho, pratica-se, enfim, um monopólio da pior espécie, um capitalismo com alguns dos vícios principais do pré-capitalismo. Vai-se às fontes, e descobre que o protesto contra a exploração do trabalho por parte de qualquer forma de capitalismo é a substância do miolo das idéias marxistas sobre o problema econômico. O sonho de Marx era ver os instrumentos de produção a serviço da sociedade humana, não a serviço de um Estado.

Queremos esclarecer que marxismo ou marxista, em nossos comentários, referir-se-á sempre à doutrina da Carlos Marx e Frederico Engels, ou à concepção do mundo — obra coletiva — que tem na figura de Marx um de seus principais representantes. Marxismo, nestes comentários, nunca designará a ideologia e a prática do bolchevismo. Não analisaremos, portanto, oposições entre o cristianismo e o mundo dos horrores e comunistas de hoje, ou entre cristianismo e um marxismo deturpado e caluniado por ignorantes, por comentadores de pouca exação ou por simples maldosos a serviço de interesses menos nobres. Procuraremos verificar o que Marx e Engels realmente ensinaram e quais os elementos de sua doutrina, ou da mundivivência de cuja estruturação foram os principais arquitetos, em antagonismo efetivo com o cristianismo, não com possíveis preconceitos de cristãos ou com um cristianismo deturpado e mal compreendido. Procuraremos evitar também os inúmeros erros de interpretação ocasionados por incoerências do próprio Marx.

Retificações preambulares

Afirmamos que existe um Marx deturpado, caluniado, não bem interpretado. Ilustrando a afirmação, avançar-nos-emos na análise de nosso assunto. Já se condenou como praga marxista a idéia do comunismo sexual, a idéia da transformação da mulher em rameira, internacional. Eis o que escreveu Marx: "Na relação com a mulher, como presa e serva da luxúria comunal, expressa-se a infinita degradação de si próprio existente no íntimo do homem" (Manuscritos Económicos e Filosóficos, pág. 126). Esta é sua opinião sobre a idéia de alguns pensadores comunistas que julgavam razoável abolir também a propriedade privada no que diz respeito às mulheres. A idéia do comunismo quanto às mulheres é do sublime Platão. Preconiza-a em seu Estado ideal, restringindo, porém, a abolição da propriedade privada às duas classes superiores: os filósofos e os vigilantes, ou guerreiros. Do que se pode colher dos escritos de Marx, pensava ele que numa sociedade de comunismo integral o amor seria livre, sim, mas no sentido de a mulher não ser nunca escrava do homem e no sentido de a união monogâmica só perdurar enquanto haja amor, não havendo nenhum empecilho à dissolução do matrimônio e à constituição de outro. Claro que isto não se harmoniza com a posição cristã. Todavia, é claro também que a idéia de Marx não se confunde com quaisquer teses de comunismo sexual, entendido este como comércio sexual de grupos de homens com grupos de mulheres, ou de todos os homens com todas as mulheres. Basta dizer que Marx foi materialista — lembra alguém. Cremos que não basta. Convém esclarecer em que sentido o foi. Materialismo, na acepção filosófica do termo, não é sinônimo de hedonismo, ou epicurismo, no sentido de sensualidade; não é a afirmação do primado do ganho e conforto materiais, o primado do deus-ventre e do bezerro de ouro. Estas coisas o materialismo de Marx as exprobra ao capitalismo de seu tempo. Materialismo, em filosofia, designa sistemas que negam a substância imaterial. Quando se fala em materialismo a propósito de Marx, deve entender-se o termo nesta sua acepção filosófica, não no sentido que se lhe empresta em debates de natureza ética ou axiológica, ou quando se discute psicologia das paixões.

Vejamos agora duas inexatidões muito difundidas no que diz respeito ao materialismo histórico, designação equívoca que deveria ceder o lugar à expressão materialismo econômico. Demos a palavra a Marx, para que nos diga o que entende por materialismo histórico: "O resultado geral a que cheguei, e que, uma vez alcançado, serviu de guia a meus estudos, pode ser assim sintetizado: na produção social de sua vida, os homens ingressam em relações definidas, que são indispensáveis e independem de sua vontade, relações de produção correspondentes a determinada etapa de evolução de suas forças produtivas materiais. O grande total dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, o verdadeiro alicerce sobre o qual se ergue uma super-estrutura jurídica e política à qual correspondem formas definidas de consciência social. O sistema de produção da vida social condiciona o processo da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina seu ser social, porém pelo contrário, seu ser social é que determina a consciência deles" (Prefácio a uma Contribuição à Crítica da Economia Política, Obras Seletas, Marx-Engels, vol. I, Moscou, 1955, páginas 362-362). Notemos, em primeiro lugar, que, segundo o materialismo histórico, o modo de produção determina o modo de pensar, os desejos, os interesses, ao passo que segundo o materialismo na acepção vulgar, extra filosófica, a motivação fundamental do homem é o ouro, o estômago e a libidinagem. De passagens como a que transcrevemos, poder-se-ia inferir que o homem, no entender de Marx, é mero joguete de circunstâncias. Todavia, não foi esta a exata posição de Marx. Nega-o ele explicitamente: "A doutrina materialista referente à mudança das circunstâncias e da educação esquece que as circunstâncias são modificadas pelos homens e que o próprio educador tem de ser educado" (Ideologia Germânica, Marx-Engels, N. Iorque, 1939, nág. 197). É paradoxal e é incoerente que Marx afirme a existência de ideais inerentes ao homem, bem como a capacidade do homem no sentido de fazê-los valer no processo histórico, mas a verdade é que ele afirma ambas as coisas. Voltaremos à questão mais a diante. Convém chamar ainda a atenção para um ataque ao marxismo que representa uma incoerência da parte de muitos de seus críticos quando feito em termos absolutos: a agressão à tese marxista sobre o uso da violência. Como é sabido, Marx defende o apelo para a revolução pelas armas, que foi o método usado em' 70 % das revoluções, segundo uma equipe de pesquisadores da Universidade de Harvard. Muitos democratas costumam falar dessa tese com ares de mahatma Ghandis contrafeitos por semelhante filosofia de animais. Esquecem que a revolução é a mãe da democracia ocidental. Se não há dúvida que o ideal é a transformação pacífica do que deva ser transformado, também não há dúvida que os democratas sempre admitiram, pelo menos na prática, a hipótese da revolução sangrenta. Apenas queremos dizer que não é muito convincente atacar, de um lado, e em termos absolutos, a idéia que legitima o uso da força, e de outro, fazer discursos vibrantes sobre o Sete de Setembro, exaltar a Revolução Francesa, celebrar figuras como Jorge Washington e Abraão Lincoln, ou endossar o nosso Rui Barbosa quando afirma, numa conferência em que tritura o governo do marechal Hermes: "A maior das revoluções estaria cem vezes justificada com esses desvarios, que anulavam a federação, destruíam o regime constitucional, aboliam a justiça e canibalizavam a política brasileira" (A Crise Moral, Organização Simões, pág. 104). Marx via na atividade revolucionária apenas um meio de levar a termo uma nova ordem social já em gestação: "A força é' a parteira de toda sociedade antiga que carrega no ventre uma nova" (O Capital, vol. I, pág. 824). O certo é que a maioria dos democratas escandalizados com a defesa da violência sempre aplaudiu de pé as intervenções cesarianas da parteira marxista. Observa-se que os elogios ou as condenações de que ela é objeto dependem do ventre em que mete ou ameaça meter o bisturi. Outro* equívoco diz respeito à tese marxista da abolição da propriedade privada. Há quem diga: Não abro mão do direito de posse exclusiva de uma casa, uma horta, um automóvel, etc. Importa notar que Marx usa a expressão propriedade privada num sentido histórico bem definido. Em seus escritos, esta expressão designa a posse individual dos meios de produção no sistema capitalista. Meios de produção, para ele, é matéria-prima e ferramenta. E não interfere com a casa, a horta e o automóvel de ninguém, É interessante citar aqui a Constituição Soviética, de 1936. Diz ela, no artigo décimo, que a lei protege o direito pessoal de propriedade, o direito de salário e economias, de moradia e atividade econômica a ela anexa, dos instrumentos da atividade econômica anexa e dos utensílios de uso doméstico, dos objetos que satisfaçam necessidades ou o conforto pessoal, bem como o direito de herança no que diz respeito à propriedade pessoal do cidadão.

Ainda uma advertência para os que desejam julgar acertadamente da economia política de Marx, a parte de sua obra que mais interessa à ciência: é preciso não perder de vista que sua análise crítica tinha por objeto o capitalismo decimononista, da primeira revolução industrial, fato que torna sua análise caduca em grande medida, pois as coisas evoluíram de lá para cá. Já ingressamos na era da revolução técnica, na era da cibernética, da aplicação da energia atômica, etc. O elemento positivo de sua crítica está nos defeitos que apontou no capitalismo da velha guarda, defeitos que o neoliberalismo econômico de nossos dias tenta superar.

Contexto histórico-social

É oportuno acrescentar aqui algumas palavras que ajudem a compreender o surgimento e florescimento da ideologia marxista. Criaram-lhe ambiente propício as conseqüências práticas da concepção imoral de uma economia absolutamente autônoma. O liberalismo do século passado, que concebia o Estado como organismo destinado a manter a ordem pública e fazer cumprir a lei, deixando o bem-estar econômico do povo à mercê do jogo de interesses da livre empresa (laissez-faire), provocou também o surgimento dos Estados totalitários. O individualismo liberal, que relaxou, sem dúvida possível, o aspecto social do ser humano, atomizando a sociedade, só poderia resolver os problemas econômicos e sociais se fossem verdadeiros seus pressupostos. Um destes pressupostos é o da espontânea autolimitação de cada um. A história do século passado e a do nosso evidencia a insuficiência de se assegurar a autodeterminação do indivíduo num sistema de livre concorrência, sonhando que daí resultará a harmonia no plano econômico e social. Este sistema não impede, por exemplo, a formação de monopólios que suprimam exatamente a livre concorrência. O fato indiscutível é que o simples aumento da produção de forma nenhuma garante automaticamente mais bem-estar para todos. Também não padece contestação que só a gancho os operários conseguiram a fixação de salário-mínimo, seguro contra acidentes, limitação das horas de trabalho, férias remuneradas, direito de se associarem para a defesa de seus interesses, etc. Marx tornou-se intérprete da vasta desilusão produzida nas massas pelo liberalismo selvagem de seu século, que rebaixou o trabalho humano a mercadoria e o explorou criminosamente. O interesse único que orienta o mau capitalismo é o lucro do indivíduo. Sacrifica ao lucro, sempre que possível, todo e qualquer interesse coletivo. A criatura humana lhe é um animal capaz de realizar determinados trabalhos e obrigado a comprar determinados produtos. Este inumanismo, praticamente materialista, é o grande responsável pelo surgimento e florescimento da esquerda radical.

Ninguém pode negar que o capitalismo liberal em sua primeira fase desempenhou papel útil e até necessário em sua época, criando o desenvolvimento técnico e o progresso industrial. Reconhecem-no Marx e Engels no Manifesto Comunista (1848), onde afirmam que a burguesia realizou maravilhas superiores às pirâmides egípcias, aos aquedutos romanos, às catedrais góticas: civilizou as nações. É falso, contudo, o princípio deste capitalismo: o maior lucro possível para o dono absoluto da empresa. Marx afirma que esta ânsia desvairada de lucro na economia liberal-individualista conduz fatalmente à exploração do operário. Nenhum cristão duvidará esta afirmação. Nem assinará a tese do dono absoluto da empresa. Segundo o cristianismo, não há proprietários absolutos de nada; apenas há mordomos. A tese do dono absoluto da empresa nem se pode sustentar à luz da razão. Por sua finalidade, a empresa não interessa exclusivamente ao dono. Sua finalidade social não permite que o proprietário lide com ela como se lida com bens de uso e consumo. O bom senso jurídico sujeitará o dono a preceitos de direito público que defendam os interesses coletivos envolvidos na empresa. O cristão repudiará também o princípio do livre jogo das forças econômicas. Seu princípio é outro: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Estes dois princípios mutuamente se excluem. A mensagem social do cristianismo é a lei do amor, não o catch as catch can do liberalismo econômico em sua forma selvagem. • Não se cometa, porém, o erro de pensar que Marx apenas criticou defeitos do pré-capitalismo de sua época. Para ele, o esbulho capitalista é da lógica do sistema. Baseia esta crítica na teoria da mais-valia. Exporemos, rapidamente, esta teoria e em seguida apontaremos as divergências irredutíveis entre marxismo e cristianismo, que é propriamente nosso tema.

Conceito de mais-valia

Diz Marx que o assalariado vende força ou capacidade de trabalho, produzindo, entretanto, valor superior ao que recebe. A diferença é a mais-valia, que vai ao bolso do dono da empresa. Em outras palavras: o assalariado trabalha mais do que seria necessário ao seu sustento. Desse tempo a mais apropria-se o capitalismo.

Ilustremos com um exemplo hipotético: um operário ganha Cr$ 500,00 por dia. Em quatro horas de trabalho produz, por hipótese, mercadoria no valor deste salário. Trabalhando, porém, oito horas, produz mercadorias no valor de Cr$ 1.000,00. Sustentando-se o operário com apenas quatro horas de trabalho, no sobretempo (mais quatro horas) realiza produto cujo valor comutativo corresponde aos víveres de mais um dia de trabalho. Deste sobretempo beneficia-se o capitalista. O aumento de valor correspondente ao trabalho do sobretempo é a mais-valia. O capitalista emprega parte de seu capital em melhorias e aquisições — capital constante; emprega outra parte em salários — capital variável. É este capital variável, assim chamado porque varia conforme a força de trabalho empregada pelo empresário, que produz a mais-valia, pois o capital gasto em salários produz mais valor do que o valor dos salários. A tendência do empresário será, pois, aumentar a taxa da mais-valia (o lucro é o motor da economia capitalista). Na época de Marx o capitalista podia alcançar esse objetivo através da exploração dos assalariados, diminuindo o salário ou aumentando as horas de trabalho. Quando surgiram as leis que limitam as horas de trabalho e fixam o salário-mínimo, viu-se o capitalista obrigado a seguir outro método: aumentar a produtividade através de máquinas cada vez mais aperfeiçoadas. Mas isto implica em aumento mais rápido do capital constante do que do variável. Nesta situação, a taxa de lucros tende a baixar. Os prejudicados reagiram de várias maneiras. Uma delas é a formação de monopólios, o que lhes permite controlar a produção. Em resumo, a tese de Marx é a seguinte: o direito ao valor total da produção é do conjunto dos que produzem. Não procede a afirmação de que Marx haja defendido o direito do indivíduo ao valor total do que produz. Falsa também é a afirmação, muito comum, de que segundo Marx apenas o trabalho manual produz valor, e que apenas este trabalho tem direito a remuneração. Marx reconhece que também produz valor o cérebro que dirige a produção, e defende, como é óbvio que fizesse, a remuneração de quem trabalha na distribuição dos produtos. Sua crítica incide sobre o fato de um indivíduo ou grupo se beneficiar da mais-valia. Não teria cabida aqui uma análise pormenorizada da economia política de Marx. Cairíamos fora de nosso tema. Expusemos o conceito de mais-valia porque a ele já nos referimos duas vezes. Acrescentaremos tão somente algumas linhas a propósito das expressões "valor comutativo" e "valor de uso", de que acima nos valemos. Valor comutativo de uma mercadoria é a estimativa dela quando encarada sob o seu aspecto de capacidade de troca. Valor de uso de uma mercadoria é a estimativa do objeto sob o aspecto de sua utilidade. Marx defende a tese de que o trabalho humano é a medida pela qual se afere o valor de troca. Salta aos olhos que é defeituosa esta teoria, que se aplica apenas na hipótese de ser o valor da mercadoria determinado pelo trabalho. Qualquer madeireiro dirá que o valor de troca do jacarandá é superior ao do pinheiro por causa do diferente valor de utilidade dos dois, não por causa do trabalho humano. E se dois moços, por exemplo, visitam, durante o mesmo espaço de tempo, uma escola tecnológica, e, formados, empregam, por hipótese, o mesmo tempo de trabalho na produção de determinados utensílios, e assim mesmo o valor comutativo do utensílio de um deles é superior ao do outro, a causa da diferença de valor estará na maior ou menor perfeição do produto, devida a. diferença de talento. Em ambos os exemplos, o valor de utilidade pesa na determinação do valor de permuta. Segundo a teoria econômica aceita pelo maior número de teóricos de hoje, o valor da mercadoria é determinado pela utilidade que ela representa para o comprador. Todos estes teóricos, por isso mesmo, estão de acordo com Joseph Schumpeter quando o renomado professor declara a teoria marxista morta e sepultada (cf. Capitalismo, Socialismo e Democracia). É uma teoria que só funciona quando se pressupõe uma série de condições que não se verificam na realidade. O princípio do trabalho-quantidade não leva em consideração o trabalho especializado, a habilidade, as diferenças naturais entre operários, a maior ou menor aplicação. Considera o trabalho apenas do ponto de vista do tempo médio social, isto é, o tempo socialmente necessário para fabricar certa espécie de objetos: aqueles que podem ser reproduzidos em série. Se é justo salientar estes pontos fracos da teoria, não é justo, porém, de outro lado, dar a entender, como tantas vezes se faz, que Marx não percebeu estas lacunas. Marx não pretende, por exemplo, que sua teoria tenha aplicação ao trabalho artístico. Poderíamos dizer ainda que do ponto de vista do marxista a ilustração do jacarandá e do pinheiro não subsiste, pois no mundo sonhado por Marx o dono destas riquezas naturais é a humanidade.

Antagonismo fundamental entre marxismo e cristianismo

Passaremos a estudar agora o antagonismo doutrinário fundamental e irredutível entre marxismo e cristianismo. Este é espiritualista. É-lhe essencial a finalidade extra-terrena. Aquele é materialista. O horizonte de sua filosofia — e o marxismo é acima de tudo uma filosofia — é a vida terrena. Em oposição ao terrenismo marxista, que sonha com uma pátria utópica do aquém a ser organizada pelo homem, o cristianismo nos aponta um mundo renovado por Deus, afirmando que só nele o homem se realizará integralmente.

Base filosófica do marxismo

A base filosófica do marxismo é o materialismo dialético. Chama-se assim porque sua filosofia do ser é materialista e seu método de pesquisa é o método dialético. O conceito dialética vem da filosofia grega. A técnica dialética, a princípio, era a arte da discussão, a arte de raciocinar dividindo os conceitos em gêneros e espécies, a fim de descobrir as contradições do adversário e superá-las, para alcançar a verdade. Era o movimento do logos. No vocabulário marxista, dialética é a lei da mudança, a lei das contradições no mundo e no pensamento. A idéia fundamental da filosofia dialética é a unidade de todas as contradições. A partir desta idéia, Hegel, filósofo idealista (identificou o conteúdo do pensamento com o objeto do pensamento e negou a existência de objetos reais independentes do pensamento), criou a fórmula tese (posição ou afirmação) —antítese (oposição ou negação) — síntese (composição ou negação da negação). Segundo este jogo trifásico, firmada a síntese, transforma-se ela em tese, reiniciando-se o processo. A tese é o equilíbrio primitivo, a antítese é a ruptura do equilíbrio e a síntese é o restabelecimento do equilíbrio em nova base. Esta tríade ocorre nas idéias, que constituem a substância da realidade. A história universal é o desenvolvimento do espírito no tempo, como a Natureza é o desenvolvimento da idéia no espaço. Esta é, em síntese, a filosofia dialética de Hegel, um dos mais difíceis sistemas filosóficos.

Não precisa sentir-se muito deprimido quem não entendeu nada. Confessou Hegel, quando se aproximava a hora de sua morte, que ninguém o havia entendido, com exceção de Michelet. E acrescentou, desolado: E este ainda me entendeu mal. Os discípulos de Hegel dividiram-se em direita e esquerda hegeliana. Aqueles, conservadores, adotaram o método e a doutrina do mestre e procuraram conciliar hegelianismo e cristianismo. Estes aceitaram o método, rejeitando, porém, o idealismo de Hegel e substituindo-lhe o materialismo. Entre eles estão Ludwig Feuerbach e Marx. Entendia Marx que as idéias de Hegel valiam para alguma coisa, todavia só depois de desponta-cabeceadas. E tratou de virar a dialética hegeliana, porque esta estava de ponta-cabeça, em virtude do idealismo de Hegel, que concebia a história do mundo como história da luta de idéias. Com o método dialético hegeliano despido de sua vestimenta idealista e acrescido da crítica feita a Hegel pelo materialista Ludwig Feuerbach, formulou os princípios do materialismo dialético. Segundo a idéia nuclear do neo-hegelianismo marxista, as contradições do pensamento não se devem exclusivamente à imperfeição da inteligência. Têm um fundamento na realidade extra-mental. O método dialético pretende ser o instrumento adequado para a análise dos elementos contraditórios da realidade objetiva, cuja unidade está no todo em movimento. Proletariado e burguesia, por exemplo, são dois elementos contraditórios da realidade objetiva, duas classes nascidas do entrechoque de forças econômicas, não de idéias, como pretendia Hegel. A burguesia é tese, o proletariado é antítese, a sociedade comunista será a síntese. O Dicionário Filosófico Soviético de Judin e Rosental assim define a dialética: "A dialética é a ciência das leis gerais da evolução na Natureza, na sociedade humana e no pensamento." Esta última, a ciência das leis gerais evolutivas do pensamento, é a chamada dialética subjetiva. Corresponde, mais ou menos, à nossa Lógica. Segundo Estaline, os quatro elementos básicos da dialética marxista são os seguintes: 1. Considera todos os fenómenos da Natureza em sua conexão e em seu condicionamento recíproco; 2. Concebe a Natureza e todas as suas manifestações como estando em contínuo movimento, modificação e desenvolvimento; 3. Considera o processo evolutivo a) como evoluir do inferior ao superior; b) como evolução desigual, sujeita a saltos repentinos — graduais modificações quantitativas causam repentinas modificações qualitativas (É o chamado salto dialético, desesperada saída de emergência em presença do enigma da realidade espiritual); 4. Considera o processo evolutivo como luta dos contrários. É aqui o lugar para algumas observações adicionais sobre o terceiro elemento básico da dialética marxista. Da matéria, elemento primacial, originou-se a consciência, dogmatizam os filósofos marxistas. Ficariam atarantados se os reptássemos, seguindo a velha e boa norma científica, a que provassem sua afirmação.

Perguntasse-lhes um Sócrates que é matéria e qual o elemento da matéria que gerou o mistério indecifrado da consciência, e far-se-ia um silêncio de chumbo entre os eloqüentes defensores da tese. Quanto à matéria, o deus desconhecido dos marxistas, ainda não elaboraram dela um conceito claro. É uma das lacunas essenciais de sua filosofia, materialista. Teóricos do comunismo identificam matéria, ser, natureza e realidade. Tudo em nome do preconceito do monismo materialista. E esta matéria, ou ser, ou natureza se reduz a um puro vir-a-ser, o que equivale a afirmar a mudança e ao mesmo tempo negar a coisa que muda, a substância. Fica muito mal chamar a esta barafunda antifilosófica tranquilamente de ciência e alegar que tudo está garantido pelo método dialético, método com o qual pretendem pesquisar, cientificamente, a realidade total e radical do devenir. Ensinam Marx e Engels que o animal principiou a tornar-se homem quando começou a produzir seus alimentos. É pelo trabalho, pela produção de víveres, assegura Engels, que o macaco se tornou ser pensante. Engels deixou de explicar como é que o macaco chegou a valer-se de instrumentos para o fim inteligente, refletido, de produzir víveres, se a reflexão surgiu apenas com esta espécie de atividade, como afirma. Só fabrica instrumentos quem sabe prever-lhes a utilidade, e quem sabe fazer isto já é ser pensante. É difícil compreender como é que um animal racional pode sustentar a tese de que o homo sapiens nasceu do macaco fabricante.

Materialismo histórico

Analisemos agora um pouco o materialismo histórico, aplicação ou extensão do materialismo dialético à pesquisa da história da sociedade humana. Divergem os autores na exposição do pensamento de Marx sobre as relações entre a base econômica e a superestrutura ideológica. Entendem uns que na interpretação econômica de Marx o homem é movido e determinado inteiramente pelo fator material da produção. Outros afirmam que a teoria marxista não ignora os motivos extra-econômicos, pretendendo apenas que o modo de produção determina fundamentalmente a estrutura social, e esta molda atitudes, opiniões, princípios. Marx efetivamente afirma que as relações de produção constituem a base, a infra-estrutura sobre a qual se edifica a superestrutura ideológica, mas também deixa claro que a seu ver as condições econômicas não constituem a única causa ativa. A superestrutura ideológica, embora seja estéril no sentido de não criar nada de novo, reage em alguma medida sobre a sua base econômica. Não ensinasse esta interação e perderia o sentido a propaganda comunista, que pressupõe a possibilidade de a ação humana acelerar o processo de transformação da infra-estrutura econômica, apressando a sonhada síntese final. Quem estuda atentamente a obra de Marx verificará uma evolução de seu pensamento que o levou a modificar a tese do exclusivismo causal afirmado de início. Lerá até esta concessão de Marx: certos períodos de máximo desenvolvimento da Arte não têm relação direta com a base material (cf. Crítica da Economia Política). Também é preciso ter o cuidado de evitar a confusão entre o que Marx realmente ensinou e o que expositores do marxismo deduzem de suas idéias básicas. O que o analista do marxismo pode dizer em todo caso é que em seu modo de ver a filosofia marxista conduz logicamente à tese de que o fator material é, em última análise, o único fator. Os marxistas não podem negar que todo e qualquer valor espiritual, em seu monismo materialista, sendo necessariamente produto da matéria, dela depende inteiramente. Há uma boa dose de verdade na tese marxista: a consciência reflete, em grande parte, certas condições objetivas. Quanto ao papel que as relações de produção realmente desempenham, é questão que não nos cabe discutir aqui. Apenas ainda uma ligeira referência a uma das contradições da teoria marxista. Afirma-se que a base material condiciona e gera a vida espiritual da sociedade. Acontece, porém, que qualquer organização econômica humana já inclui elementos de natureza espiritual. Ensina, demais, a História que determinados tipos de organização econômica surgiram era conseqüência de idéias ou teorias. Em tais casos, a superestrutura condicionou a base. Haja vista o caso da teocracia judaica. Para evidenciar a debilidade científica da teoria pré-fabricada do materialismo histórico, basta fazer uma série de perguntas bem concretas: quais as relações de produção que geraram e condicionaram o sermão do monte? E as sinfonias de Beethoven? E a Reforma Luterana? E a língua grega? E a filosofia de Spinoza? . . . Devem os marxistas optar entre duas coisas: reconhecer a insuficiência de sua teoria, ou repetir a frase que um crítico espirituoso atribuiu a Hegel: Se os fatos concordam com minhas idéias, muito bem; se não concordam, pior para os fatos. Pior, por exemplo, para o fato de que não se verificaram mudanças técnicas radicais entre a baixa Idade Média e o surgimento do capitalismo, ao passo que a vida cultural passou por transformações profundas no mesmo período (cf. Teoria Literária, Rene Wellek y Austin Warren, Editorial Gredos, 1953, pág. 178).

Fatos inúmeros e de sentido evidente destroem a suposição de que os fatores objetivos aniquilam praticamente a vontade do homem. Mas esta falsa suposição está implícita na aplicação do materialismo dialético à pesquisa da história da sociedade humana, pois esta aplicação pressupõe que as regularidades dialéticas da Natureza são as mesmas da sociedade. Há transformações necessárias, que arrastam o homem, uma direção básica do processo histórico que o homem não pode desviar de seu rumo. Mas dentro dessa direção básica, o homem pode orientar o fluxo dos acontecimentos com seu livre arbítrio. Isto sem mencionar o fato de que Deus orienta todo o curso da História em direção a fins estabelecidos por ele. O erro está em nivelar o determinismo de natureza moral com a ordem existente no mundo da Natureza.

Marxismo e religião

A luz das teses analisadas até aqui já podemos concluir que a religião, para o marxismo, é superestrutura, produto de lutas sociais, fruto da alienação econômica. Qualquer religião é fenômeno relativo, e seu tipo é determinado, fundamentalmente, pelo sistema econômico dominante. A religião é a pior das alienações. Às quimeras da religião — Deus, céu, inferno, etc. — o homem sacrifica sua liberdade, sua independência, sua autenticidade humana. Por ela o homem se diminui, projetando para fora de si elementos de sua natureza e personificando-os num outro — Deus. E este outro não existe. Admite o marxismo que um elemento qualquer da superestrutura, bem como o conjunto dela, pode exercer influência sobre outro elemento, mas a estrutura econômica da sociedade é o cimento real sobre o qual se ergue, em última instância, todo o edifício das idéias jurídicas, políticas, artísticas, filosóficas e religiosas, e as correspondentes instituições, como afirma Engels no Anti-Dúhring. , A pior das alienações — a religião — é, por isso mesmo, a maior das ilusões, o mais prejudicial dos entorpecentes. Afirma Lenine que a tese da religião como ópio do povo, tese sustentada por Marx em sua crítica à filosofia do Direito de Hegel, é a pedra angular da concepção marxista de religião. Deus é criação do homem. O conceito do Deus único surge da realidade do déspota oriental com pretensões a chefe único e todo-poderoso. Antes só havia divindades tribais e nacionais. Ainda que nosso tema não abranja a refutação do marxismo no plano filosófico e científico, é, contudo, interessante assinalar que a teoria acima delineada está em conflito com os resultados mais recentes da pesquisa etnológica. Guilherme Schmidt, a maior autoridade na matéria, publicou uma obra em cinco volumes sobre a questão: Der Ursprung der Gottesidee. Trata-se de um trabalho rigorosamente científico, pois suas conclusões se firmam em vastíssimo acervo de fatos. Segundo ele, um monoteísmo primitivo não mais é negado por nenhum especialista autorizado. Para negar a oposição radical que há entre cristianismo e marxismo é preciso ignorar a filosofia marxista ou a essência da religião cristã.

Afirma Erich Fromm que Marx combateu a religião por ela estar alienada e não atender às necessidades verdadeiras do homem. E acrescenta que Marx lutava contra um ídolo a que chamam Deus (cf. Conceito Marxista do Homem). Quanto a esta última afirmação, note-se que Marx não lutava apenas contra ídolos. Seu monismo é a negação do Deus verdadeiro. Além disso, criou vários ídolos, entre eles o grande ídolo MATÉRIA, de onde provém tudo e em que tudo consiste. A outra afirmação de Erich Fromm, a de que Marx combateu a religião por ela estar alienada e não atender às necessidades verdadeiras do homem, nos leva ao núcleo do debate entre marxismo e cristianismo. Marx quer uma sociedade que satisfaça as verdadeiras necessidades do homem. Quais são estas necessidades? Não se pode responder a esta pergunta sem antes haver respondido a outra: qual a natureza e o destino do homem? Com esta pergunta entramos no vivo da questão entre marxismo e cristianismo.

Conceito de alienação

Precisamos analisar agora o conceito marxista de alienação. Para Marx, a alienação é estágio fatal da evolução humana. Antes de chegar ao humano, o homem passa pelo inumano, que é a alienação do humano. O homem trabalha, produz objetos, mas, ao invés de fruir todo o proveito do objeto produzido, encarnação de sua inteligência e atividade, trabalha para um outro, que o escraviza. É a alienação do trabalho. Alienação de que o próprio capitalista é vítima, pois também a ele o capital escraviza (convém lembrar que o objeto produzido também representa o suor e o talento do empresário). O homem cria o Estado, mas o Estado torna-se uma realidade autônoma e passa a dominar o homem, como um fetiche hostil, um outro, um estranho. As relações que o homem mantém com uma criatura do homem (o Estado, v.g.), mas que se libertou dele e o domina e explora, implica em perda de si mesmo: é alienação. A religião apresenta ao homem problemas falsos. Deus, pecado, redenção, vida eterna são fetiches da alienação religiosa, fetiches que escravizam o homem, não lhe permitindo tomar consciência de sua verdadeira alienação, que se verifica principalmente na vida prática. Por isso mesmo — note-se bem isso —, a religião é a pior das alienações. É ópio que entorpece o homem,- véu místico de que se valem os opressores para estorvar a visão dos oprimidos, impedindo-os de se libertarem da alienação produzida pelo capital, que cria e explora falsas necessidades. Alienado de seu trabalho, do produto de seu trabalho, de si mesmo, do semelhante, da Natureza, o homem é escravo que só pode alcançar sua libertação no processo de produção, processo este que gera o próprio homem, como já vimos. Para o cristianismo, a alienação fundamental do homem, a raiz de todas as demais alienações, é sua rebelião contra Deus. Alienado de Deus, e, conseqüentemente, de si mesmo, de sua natureza, de seu destino. Cristo o liberta desta alienação. Isto é religião, superestrutura ideológica, reflexo das relações de produção, fantasia que surge na consciência em virtude dos sentimentos de imperfeição e impotência, responderia Marx. "Como na religião o homem é governado pelos produtos de seu próprio cérebro, assim na produção capitalista é governado pelos produtos de suas próprias mãos" (O Capital, I, pág. 681). Liberte-se o homem desses produtos, deixe de ser escravo das coisas que produz, e estará livre também da alienação religiosa, produto de seu cérebro. É uma antropologia em oposição fundamental com a antropologia cristã.

Ética marxista

Outro ponto que nos interessa particularmente é a posição marxista relativamente à moral. Ensina o marxismo que qualquer moral não passa de código em que se sanciona a prática social média de uma época e de um lugar, prática determinada pelas condições de existência. Moral burguesa, que é sempre moral classista, não passa de um conjunto de normas com que se acoberta a classe dominante para explorar a massa de assalariados. Aos que os acusam de ensinarem um relativismo ético radical, os marxistas respondem que eles combatem o relativismo ético entendido como arbitrariedade, subjetivismo. Seu critério de moralidade é o interesse do que chamam classe obreira. Moral, portanto, que acompanha — dizem —• o desenvolvimento objetivo da humanidade em busca da sociedade comunista. Pretendem resolver o problema ético pela criação de uma moral fundamentada no que lhes parece ser a realidade. Esta realidade está em constante evolução, que obedece a certas leis. Participar desta evolução, superando-se a si mesmo, é imperativo de ação que nasce do próprio devir. É isto o que os marxistas querem dizer quando falam de uma nova ética, fundada no real, ética que acompanhe o desenvolvimento objetivo da humanidade. De sorte que a idéia-mater da ética marxista é a fidelidade à revolução. Moral, conclui Lenine, é tudo o que contribui para a destruição dos exploradores.

As classes e o Estado

A propósito de "classe obreira", "classe dominante" e "luta de classes", algumas observações sobre o conceito de classe. Este conceito continua sendo uma das dores de cabeça dos filósofos marxistas. Um gerente de grande firma, por exemplo, e que não é proprietário de meios de produção, deve ser considerado como pertencente à classe operária, segundo o conceito marxista. Um frágil sapateiro, a partir do momento em que contrata um auxiliar, deve ser considerado capitalista. Já existiu, dizem os marxistas, uma sociedade sem classe. Quando esta sociedade se partiu em classes, surgiu, da luta das classes, o Estado. A segunda organização social foi escravocrata. A esta seguiu-se o feudalismo, e deste nasceu o capitalismo. No dia em que estiverem abolidas as classes, morrerá o Estado. Essa parte da teoria marxista foi explanada por Frederico Engels num ensaio de sociologia genética intitulado "Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado". O Estado sempre é o elemento de que se vale a classe dominante para oprimir os pobres. Querem os russos que se abra uma exceção a essa sentença: o Estado soviético. Mas a verdade é que o Estado soviético nada mais é do que um grande capitalista que domina e explora o proletariado. Embora a propriedade privada, que consideram origem de todos os males, esteja abolida há quase meio século na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, continuam todos os males que lhe são atribuídos. Seria o caso de os filósofos soviéticos examinarem a hipótese de que a origem de todos os males do Paraíso Socialista talvez seja a propriedade privada dos americanos.

Propriedade privada

Examinemos agora a questão da propriedade privada, no sentido em que Marx usa a expressão: posse individual de bens produtivos. A palavra comunismo designava, inicialmente, a socialização dos meios de produção. Em algum dos sentidos da palavra, pode falar-se em comunismo dos cristãos primitivos de Jerusalém. Ensaiaram aqueles cristãos um sistema, aliás, mal sucedido, pois os comunistas de Jerusalém a breve trecho estavam necessitando esmolas dos irmãos de outras igrejas. Importa notar o seguinte quanto àquele comunismo: 1. era praticado por irmãos na fé; 2. era prática espontânea, livre iniciativa do amor; 3. não consideravam roubo a propriedade privada: "Conservando-o, porventura, não seria teu? E, vendido, não estaria em teu poder?" (Atos 5.4). Quem condenava a propriedade privada eram os maniqueus e outras seitas, não os cristãos. Nem Cristo nem os apóstolos consideravam a propriedade privada como roubo. Já citamos a palavra de Pedro e Ananias. Lembremos ainda o conselho de Cristo ao jovem rico. O Mestre não aconselharia a ninguém que vendesse seu roubo. A Bíblia sanciona em muitos textos a posse individual dos meios de produção. Podemos, pois, dizer que à luz da Escritura a posse privada de bens produtivos de forma nenhuma pode ser considerada intrinsecamente má. O acesso de todos aos bens materiais é postulado do direito natural. Deus destinou estes bens a todos. E o direito de cada indivíduo à subsistência material impõe uma limitação inquestionável ao direito de propriedade: este cessa na medida em que prejudica aquele. Até aqui todos concordaremos. A primeira divergência pode surgir em torno da seguinte questão: tem o Estado o direito de suprimir a propriedade privada dos meios de produção? Defendemos a tese de que o Estado exorbitaria se eliminasse esse direito. O direito à posse de bens de produção é direito natural, direito, portanto, que o próprio Criador conferiu à criatura. O direito natural funda-se na necessidade que o indivíduo tem de valer-se dele. Assim sendo, é direito que resulta da natureza humana, cujo autor é Deus. Argumenta-se que o Estado pode resolver com salários o problema da subsistência do indivíduo. Esta maneira de argumentar é superficial. Certo que o problema da subsistência do indivíduo pode ser resolvido com salários pagos pelo Estado, mas com isso não cessa o direito natural da criatura humana à posse de bens de produção. E a questão é saber se uma lei positiva pode sobrepor-se a esse direito, que lhe é anterior e superior. Já dissemos que o exercício desse direito pode e deve sofrer as limitações exigidas pelo bem comum. Apenas impugnamos a tese dos que defendem o direito de o Estado suprimir o próprio direito de posse. Esse direito o Estado nem pode concedê-lo. É direito natural, como o direito de trabalhar, de ser livre, de viver. Cabe ao Estado reconhecer esses direitos, não concedê-los ou suprimi-los. Sobre a questão da propriedade privada pronunciou-se, recentemente, a carta encíclica Mater et Magistra, reafirmando posição já anteriormente firmada pela Igreja Romana. Sua posição, em traços sumários é a seguinte: a propriedade privada, mesmo dos bens produtivos, é direito natural que o Estado não pode suprimir. Segundo a encíclica, o direito de o indivíduo ser e permanecer, normalmente, o primeiro responsável pela manutenção própria e da família, é direito essencial da pessoa humana. Entende que o exercício desta responsabilidade implica o livre exercício das atividades produtivas, não admitindo, por isso, que o Estado suprima a iniciativa pessoal no campo econômico. Afirma que esse direito natural se funda sobre a prioridade ontológica e final de cada ser humano em relação à sociedade. Quanto à ação social do Estado no setor econômico, a encíclica reafirma o princípio da suplementação ou subsidiariedade: o Estado, em vez de reprimir ou suprimir a iniciativa particular, deve suplementá-la. Notemos bem a força do argumento "da propriedade ontológica e final de cada ser humano relativamente à sociedade. O indivíduo precede a sociedade na ordem do ser e a sociedade existe em função da finalidade de cada uma das pessoas que a compõem, que não o inverso.

A igreja e a ordem natural

Já criticamos, com base na História, o Estado da concepção liberal do século passado. Estado policial, que não intervém na ordem econômica, deixando os assalariados à mercê da ganância de maus patrões. Ainda firmados na História, podemos fazer agora a crítica do Estado que suprime a iniciativa particular: esse Estado tende a suprimir outras liberdades. Tende ao totalitarismo. Isto nos interessa particularmente. É muito comum a afirmação de que às igrejas deve ser indiferente o modo de organização da sociedade. Há mesmo quem chegue a dizer que à igreja é indiferente que o Estado seja totalitário ou democrático. É provável que não saiba o que significa totalitarismo quem assim pensa. Se o soubesse, compreenderia que a afirmação implica em dizer que a igreja não faz diferença entre o Estado que quer absorver e substituí-la e o Estado que não interfere em sua missão espiritual. Quanto a organizações econômico-sociais, erraria tragicamente a igreja se canonizasse determinada estrutura econômico-social, declarando-a sua estrutura. Interessa-lhe, porém, e sobremodo, a prática de sistemas que garantam e favoreçam o desenvolvimento da personalidade e não nos ameacem no exercício de nossa missão. A dimensão essencial da religião cristã é de natureza espiritual e escatológica, mas nem por isso a igreja deixa de ter uma palavra a dizer sobre justiça na esfera econômico-social, sobre família, sobre o uso e abuso de bens materiais, sobre a dignificação do trabalho, que não deve ser rebaixado a mercadoria, enfim, sobre os princípios basilares que, devidamente aplicados, favoreçam o desabrochar completo da personalidade humana. A igreja tem uma palavra a dizer sobre liberdade efetiva para todos, submissão de todos os homens a Deus, primado do espírito, promoção do bem-estar material da coletividade. É dever da igreja advertir, por exemplo, a todos: "O que oprime ao pobre insulta aquele que o criou" (Provérbios 14.31). Dizer, por exemplo, que a igreja nada tem que ver com o problema de massas humanas esfomeadas, é dizer, em outras palavras, que a igreja não deve preocupar-se com as condições sócio-econômicas que predispõem os homens a se deixarem envolver pelas promessas dos líderes comunistas, que procuram incutir ódio à religião. Lê-se e ouve-se muitas vezes que o dever da igreja se resume em anunciar aos homens o conselho de Deus para a salvação das almas e que o resto é evangelho social. É tese insustentável. Claro que a missão precípua da igreja é anunciar o conselho de Deus para a salvação eterna do homem. Disto, porém, não se conclui que a igreja deve dispensar-se do dever de lembrar princípios de moral cristã que dizem respeito à ordem natural e do dever de praticar a caridade. O erro do evangelho social consiste em, fazer com que a igreja abandone ou relaxe sua missão de transformar o indivíduo pela pregação do Evangelho, engajando-a na tarefa de transformar o ambiente em que o homem vive. Mas praticar a caridade, ou lembrar princípios bíblicos para a ordem natural, incutindo ao governo — poder a serviço da justiça — os deveres que lhe são prescritos por Deus, opondo à tese marxista sobre a origem do Estado a afirmação bíblica segundo a qual as autoridades que existem foram instituídas por Deus, e pregando a todos os homens a segunda tábua da lei, isto não é evangelho social. A igreja só mete a foice em seara alheia no momento em que começa a discutir assuntos que não interessam a princípios de ordem moral, como, por exemplo, técnicas de governo ou de organização econômica. Mas quando num país uma minoria de privilegiados vive a esbanjar o supérfluo, enquanto milhões carecem do necessário, quando se queimam produtos alimentícios a fim de manter os preços, não obstante o fato de dois terços da humanidade passar fome, estamos em presença de realidades econômicas e sociais que têm claras implicações de natureza moral, e uma igreja que não tem nada a dizer em questões desta natureza é uma igreja que ignora parte dos seus deveres. Mais um exemplo: quando poderosos grupos econômicos são acusados de tentarem pôr o Estado a serviço de seus interesses particulares, em prejuízo do bem comum, e uma igreja alega que não tem nada a dizer sobre o assunto, esta igreja precisa reestudar a epístola aos romanos, onde o Apóstolo afirma que a autoridade é ministro de Deus para o bem do cidadão. Claro que uma igreja não se pronunciará sobre a procedência ou improcedência de semelhantes acusações. Apenas lembrará princípios aplicáveis a hipótese. Cristo nos deixou princípios que obrigam a todos os homens e que a razão humana endossa como a expressão da mais elevada moralidade: "Amarás o teu próximo como a ti mesmo", e "Tudo quanto, pois, quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também a eles". É dever da igreja lembrar estes e outros preceitos divinos.

Nossa posição no problema da propriedade privada e considerações finais

Resumindo: admitimos vários tipos de apropriação dos meios de produção (individual, privada, associativa, pública). Admitimos que a lei positiva restrinja o exercício da propriedade privada de bens produtivos, condicionando-o ao bem comum. Objetamos à propriedade pública absoluta dos meios de produção pelo fato de tal coisa ferir um direito natural do indivíduo e constituir ameaça ao bem-estar material da coletividade e à liberdade, além de ser fator de desestímulo. Os marxistas poderiam responder-nos que algumas destas objeções deixam de subsistir na hipótese de uma sociedade integralmente comunista, sociedade em que tudo será de todos e em que o próprio Estado desaparecerá. Responderíamos que nossa preocupação não é criticar uma sociedade utópica. Falta-nos espaço, tempo e vontade para inquirir como ficaria tudo numa sociedade que os homens nunca chegarão a estruturar. Contra a heresia marxista que profetiza a extinção da maldade humana numa sociedade sem classes e sem Estado, repetimos a crítica fundamental que antecipadamente lhe fez Aristóteles, em sua Política, crítica que parece escrita por Lutero: "Semelhante legislação tem uma aparência artificial de benevolência e bondade (refere-se a legislações comunistas). Uma assembléia a saudará encantada, na suposição de que sob um regime comunista todos os homens serão, miraculosamente, amigos uns dos outros. E isto se crerá tanto mais facilmente, enquanto se atribuir todo abuso do sistema político atual à propriedade privada. Todavia, a verdadeira causa desses males não é a ausência de uma ordem comunista, e, sim, a malignidade da natureza humana." Esta crítica atinge em cheio todas as utopias sonhadas pelo homem, bem como a tese rousseauniana da bondade natural do homem, corrompido pela sociedade civilizada, tese com que Rousseau se torna o precursor moderno do que nos parece constituir a matriz dos erros marxistas: sua falsa antropologia. Concordamos com Marx quando insiste que a produção deve estar a serviço do homem e não vice-versa; que o homem não deve ser reificado, isto é, transformado em coisa a serviço da máquina; que o capital deve deixar de explorar falsas necessidades do homem. Discordamos de sua tese da malícia intrínseca da posse individual dos instrumentos de produção, que estaria em contradição com o caráter social da produção (Não se pode negar esse caráter social, pois todos colaboram na feitura dos produtos, mas é falso dizer que por isso a posse dos instrumentos de produção por um indivíduo ou por um grupo de capitalistas — germe de coletivismo — é intrinsecamente má. Esta propriedade privada é má enquanto o objetivo supremo e único do capitalista é o lucro). Rejeitamos a pregação marxista do ódio e da violência, não, porém, como alegam os marxistas, para acobertar a exploração com as virtudes do amor e da mansidão, sim porque o ódio e as lutas de classe, além de repugnarem ao espírito cristão, não conduzem à solução do problema social. Discordamos de sua mundividência materialista, de sua concepção do homem, de sua visão utópica do desaparecimento final do Estado, que é ordenação divina. Mas não nos limitamos a recomendar paciência e espírito de renúncia aos oprimidos e altruísmo aos ricos. Insistimos no direito de todos a uma vida realmente digna, e no dever do Estado de atender este direito. Para terminar; um pensamento de Nicolas Berdyaev: A única coisa a contrapor ao comunismo integral é o cristianismo integral.


Bibliografia Sumári a Bourgin, Georges, et Rimbert, Pierre — Le Socialisme, 1950 Engels, Frederico — Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado Fromm, Erich — Conceito Marxista do Homem, 1962 Konstantinov, F. V. — El Materialismo Histórico, 1957 Lajugie, Joseph — Os Sistemas Económicos, .1959 Der Christ und die Arbeit unter dem Ersten Gebot Lefebvre, Henri — O Marxismo, 1960 Manacorda, Guido — Marxismo e Catolicismo, in Heresias do nosso tempo, 1956 . Marx, Carlos — Manuscritos Económicos e Filosóficos Marx, Carlos — Prefácio a uma Contribuição ã Crítica da Economia Política Marx-Engels — Ideologia Germânica Marx-Engels — Manifesto Comunista Marx, Carlos — O Capital Messer» August — História da Filosofia Piettre, André — Marxismo, 1961 Schmidt, Guilherme — Der Ursprung der Gottesidee Schumpeter, Josepn — Capitalismo, Socialismo e Democracia

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Publicado Originalmente em: Revista Igreja Luterana, 1963, autor Arnaldo Schúler

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