dezembro 20, 2017

A Controvérsia Adiaforística


Quase todos os artigos da Fórmula de Concórdia¹ têm sua história, e o conhecimento desta história nos faz compreender a motivação, isto é, o porquê das discussões teológicas, e nos introduz nos assuntos abordados, bem como nos estimula a fazermos as devidas aplicações no dia de hoje, visto que as verdades divinas não poderão deixar de ser atuantes em nossas vidas.

Por esta razão daremos, neste e nos próximos posts, um breve histórico das 10 controvérsias, em ordem cronológica, conforme iam se manifestando as divergências. Talvez alguns nomes soem um pouco estranho aos nosso ouvidos, mas não temos o direito de substituí-los. Em cada histórico anotaremos o artigo correspondente da Fórmula de Concórdia.

A primeira destas divergências é a Controvérsia Adiaforística. Para entendê-la é necessário voltar para o fim da guerra de Esmalcalde². O imperador saíra-se vitorioso e dominava politicamente a Alemanha. Longe de alegrar-se com a vitória, o papa, que temia o poder crescente de Carlos V, retirou seu apoio, rompendo a aliança feita com ele. Ao mesmo tempo transferiu o concílio, apenas iniciado em Trento, para Bolonha, com o que contrariava a expressa vontade do imperador. Este respondeu à dupla reação do papa de uma maneira singular. Tomou uma iniciativa de unir as duas igrejas por meio de um acordo mútuo, que deveria servir de base para união, pelo menos em caráter provisório - daí seu nome Ínterim. Nomeou uma comissão composta de dois bispos católicos, alemães, de Augsburgo, de nome Pflug e Helding, homens eruditos e ponderados, e do lado luterano, João Agrícola, conterrâneo de Lutero, mais tarde colega e amigo em Wittenberg, até abandonar a Universidade, guardando rancor, por ter sido derrotado por Lutero em uma discussão.

O acordo permitia aos luteranos o cálice na Santa Ceia e o casamento do clero, mas exigia deles a aceitação dos sete sacramentos, da autoridade do papa e dos bispos e a reintrodução das cerimônias do culto católico, como rituais, procissões, etc. Na dieta de Augsburgo, 1548, o imperador apresentou o acordo, e logo em seguida promulgou, em forma de lei imperial, o <<Ínterim de Augsburgo>>, 15 de maio de 1548, ameaçando com severas punições aos contraventores.

O imperador cumpriu suas ameaças. Houve uma caça sem precedentes aos pregadores que se negavam a aceitar o Ínterim. Só numa área mais de quatrocentos pastores foram depostos e atirados na miséria com suas famílias, muitos foram encarcerados e alguns até executados. Uma onda de angústia e sofrimento varreu o país. Ao lado dos fracos que cederam ante a força policial, brilharam exemplos de verdadeiro heroísmo. Em sua cela, o eleitor João Frederico escreveu uma carta ao imperador, negando a assinatura do Ínterim e justificando sua atitude com as palavras de Jesus: << Todo aquele que me confessar diante dos homens, também eu o confessarei diante de meu Pai que está nos céus; mas aquele que me negar diante dos homens, também eu o negarei diante de meu Pai que está nos céus. >> Mt 10.32,33. Quando o eleitor Joaquim de Brandenburgo reuniu cerca de 300 pastores em Berlim para exigir-lhes a submissão ao decreto imperial, na presença do co-autor Agrícola, que era o seu pregador da corte levantou-se um velho pregador de nome Leutinger e declarou com voz pausada e decisiva perante todos: << Gosto de Agrícola, gosto mais ainda de meu eleitor, mas acima deles gosto de meu Senhor Jesus Cristo >> - e ato continuo tomou a cópia do Ínterim que lhe fora dada para colocar sua assinatura e lançou-a nas chamas da lareira. O crepitar do fogo parecia sublinhar o efeito da cena inesperada, e o eleitor, profundamente impressionado, desistiu de seu propósito. Lamentavelmente, Agrícola continuava na sua posição e se considerava figura importante - não havia ele reformado o papa e transformado o imperador em luterano? conforme se gloriava depois da dieta de Augsburgo. 

Melanchthon, a princípio, condenou severamente o Ínterim e foi o primeiro a escrever publicamente contra ele. Mas, informado de ter com isso provocado a ira do imperador, recuou assustado e se prontificou, a pedido do eleitor Maurício, de elaborar, em conjunto com seus colegas de Wittenberg, uma nova fórmula de união, com base no Ínterim de Augsburgo, porém, mais abrandada, apesar dos graves erros doutrinários que continha. Esse documento foi aceito na Dieta de Leipzig, em 21 de dezembro de 1548, e passou a ser chamado de << Ínterim de Leipzig >>. Como não diferia substancialmente do anterior, a maioria dos pastores negava também a este Ínterim sua adesão, preferindo deposição do cargo, prisão e toda sorte de sofrimentos.

No decorrer das discussões, o que mais apaixonava não só os teólogos mas também o povo era a questão dos assim chamados adiáforos, porque diziam respeito diretamente aos atos litúrgicos no culto e à vida congregacional. Adiáforo é uma palavra grega e significava <<indiferente>>, <<não essencial>> (em alemão: Mitteldinge). No plano da igreja considera-se um adiáforo tudo aquilo sobre que a Bíblia não se pronunciou, o que ea não proíbe, como, por exemplo, as tradições, costumes, cerimônias, etc., coisas que dependem da livre vontade do indivíduo ou da comunidade.

Na controvérsia adiaforística estavam, de um lado, os teólogos de Wittenberg, Melanchthon, Bugenhagen, Paul Eber, Jorge Major, que afirmavam ser necessário ceder nessas questões aos adversários por amor à paz na igreja. Do outro lado vamos encontrar Flacius (teve que fugir de Wittenberg), Amsdorf, Wigand, Gallus e outros, que sustentavam a palavra-chave (de Flacius): Em caso de confissão e escândalo, nada é adiáforo.

A Fórmula de Concórdia esclarece o assunto no artigo <<De Praxes Eclesiásticas>>.

Notas

1 - Fórmula de Concórdia é um documento que confirma os ensinamentos da Confissão de Augsburgo a respeito dos quais os luteranos haviam se divido. A "Declaração Sólida" é a versão original. A "Epítome" é a versão resumida destinada ao uso no estudo das congregações. Mais de 8.100 pastores e teólogos a assinaram, bem como mais de 50 chefes de governos. O documento foi escrito especificamente para estruturar e esclarecer a fé cristã luterana.

2 - Carlos V, sem preocupações externas, tentou aniquilar a independência dos estados na Alemanha e restaurar a unidade da Igreja. Com o apoio do Papado que lhe prometeu dinheiro e tropas. Os chefes da Liga de Esmalcalde, João Frederico, eleitor da Saxónia, e Filipe, duque de Hesse, foram banidos. O duque Maurício da Saxónia concluiu uma aliança com o Imperador. 

Este texto foi adaptado da Obra "Cremos, por isso também falamos", de Otto A. Goerl, publicado pela Igreja Evangélica Luterana do Brasil em maio de 1977.

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