Ludovico (Lodovico) Carracci (Bolonia, Italia / Bologna, Italy, 1555 - 1619). "Flagellazione di Cristo ... |
Por Paul G. Bretscher
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(Um
ensaio lido na Conferência de Pastores e Professores, em Louisiana, Alexandria,
La., 28-30 de abril de 1952, cujo título original é “The Covenant of Blood”,
publicado na revista “Concordia Theological Monthly”, vol. XXV, Janeiro de
1954, n. 1. Traduzido por Allan Breda)
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Para muitos a Bíblia parece conter duas
religiões diferentes. Uma é a religião do Judaísmo, no Antigo Testamento; a
outra, a religião do Cristianismo, no Novo. As diferenças se mostram tão grandes
que as duas “religiões” parecem estar “mundos” distantes. O Antigo Testamento é
uma religião de Lei; o Novo Testamento, do Evangelho. A religião do Antigo
Testamento é caracterizada por um complexo esquema de sacrifícios, pela
circuncisão, pelos detalhados regramentos quanto ao Sábado; no Novo Testamento,
tudo isso é rejeitado. A religião do Antigo Testamento é aquela de uma nação; a
religião do Novo Testamento deve ser espalhada ao redor de todo o mundo.
Desde o começo da igreja cristã, essas
diferenças foram um grande problema. Paulo e outros apóstolos, na igreja
primitiva, tiveram muitas dificuldades para convencer os cristãos de origem
judaica de que ao se abrir mão da circuncisão, dos sacrifícios, e de outras
práticas estimadas da sua lei cerimonial, eles não estariam perdendo uma
partícula sequer da real essência da sua religião do Antigo Testamento. Hoje,
muitas pessoas ainda compartilham a noção de que, pelo fato de o Judaísmo
aceitar o Antigo Testamento, ele é tido por uma religião verdadeira, na medida
do possível. Muitos cristãos hoje dizem “eu creio no Novo Testamento” e, por
isso, implicam indiretamente que existe uma diferença fundamental entre o
Antigo e o Novo. O relacionamento do Antigo Testamento com o Novo Testamento é
um problema com o qual muitos estudantes de teologia e muitos pastores têm
lutado com todo empenho.
Nós bem sabemos que o Novo Testamento
coloca o seu claro selo de aprovação na completude do Antigo Testamento como
sendo verdadeira Palavra de Deus. Nós sabemos que o mesmo Espírito Santo é o
Autor divino de ambas alianças, e que, portanto, elas devem conter uma unidade
que reflete aquela mesma unidade do eterno e imutável Deus. Nós aceitamos o
princípio teológico de que o Novo Testamento permanece escondido no Antigo, e o
Antigo é revelado no Novo; como São Paulo observa, “o véu [que cobre o Antigo
Testamento] é removido em Cristo” (2Co 3.14). Tudo isso sugere que existe uma
unidade fundamental que conecta os dois Testamentos em uma única religião. Mas,
o que é esta ligação de unidade?
Este ensaio se propõe a constatar que uma
linha desta unidade é o conceito de sangue, com todas as suas implicações, no
Antigo e no Novo Testamentos. Para o escritor, é esse conceito que lançou
abertamente a glória e a beleza da religião do Israel do Antigo Testamento e
adicionou aquela glória e beleza à religião de Jesus Cristo.
I
O
Sangue da Aliança
O Deus da Bíblia é um Deus de Aliança – um
Deus que não permanece longe dos homens com um espírito de desinteresse e de despreocupação,
mas que, por sua iniciativa própria, faz chover sobre eles promessas e a sua
graça; que se aproxima e conversa com eles, perdoa os seus pecados e faz deles
o seu próprio povo. Duzentas e setenta e cinco vezes, na Bíblia, são feitas
referências à aliança de Deus com o homem. Deus faz uma com Noé, Abraão,
Moisés. Ele promete uma nova aliança a Jeremias (Jr 31.31-34; cf. Hb 9.6-9).
Ele nos dá a sua nova aliança em Cristo. Uma característica deve ser
especialmente observada ao traçarmos a história das alianças que Deus fez com o
homem. É isso, de que com a aliança há sempre um selo, um sinal externo e
garantia, no qual ela é oferecida. Mais comumente, e com poucas exceções (e.g.,
o Sábado, como um selo da aliança de Deus, Ex 31.12-17), o selo da aliança é sangue.
No Antigo Testamento, ele é enfatizado em passagens como a seguinte[1]:
E enviou alguns
jovens dos filhos de Israel, os quais ofereceram ao SENHOR holocaustos e
sacrifícios pacíficos de novilhos. Moisés tomou metade do sangue e o pôs em bacias;
e a outra metade aspergiu sobre o altar. E tomou o livro da aliança e o leu ao
povo; e eles disseram: Tudo o que falou o SENHOR faremos e obedeceremos.
Então, tomou
Moisés aquele sangue, e o aspergiu sobre o povo, e disse: Eis aqui o sangue da
aliança que o SENHOR fez convosco a respeito de todas estas palavras. (Ex
24.5-8).
Congregai os meus
santos, os que comigo fizeram aliança por meio de sacrifícios. [i.e., por
sangue] (Sl 50.5).
Quanto a ti, Sião,
por causa do sangue da tua aliança, tirei os teus cativos da cova em que não
havia água. (Zc 9.11).
No Novo Testamento, o selo da aliança, de
novo, é sangue, o sangue de Cristo. Nós o vemos mais admiravelmente nas
palavras de Jesus enquanto ele institui a Ceia do Senhor: “Isto é o meu sangue
da nova aliança” (Mt 26.28). O fato de que o sangue de Jesus Cristo é o selo da
nova aliança é poderosamente enfatizado, também, na Epístola aos Hebreus:
De quanto mais
severo castigo julgais vós será considerado digno aquele que calcou aos pés o
Filho de Deus, e profanou o sangue da aliança com o qual foi santificado, e
ultrajou o Espírito da graça? (Hb 10.29).
E (vós viestes) a
Jesus, o Mediador da nova aliança, e ao sangue da aspersão que fala coisas
superiores ao que fala o próprio Abel. (Hb 12.24).
Ora, o Deus da
paz, que tornou a trazer dentre os mortos a Jesus, nosso Senhor, o grande
Pastor das ovelhas, pelo sangue da eterna aliança, vos aperfeiçoe. (Hb
13.20-21).
Em quase todo caso, o selo da aliança de
Deus é, ou pelo menos envolve, sangue. Uma exceção de que temos de observar é o
selo do arco, dado a Noé (Gn 9.8-17). Isto, como nós já podemos ver, foi uma
circunstância excepcional. Ela envolveu uma aliança de graça muito específica e
contém a garantia e certeza, advinda de Deus mesmo, de que as nuvens nas quais
o seu arco repousava nunca mais derramariam as suas terríveis águas para
destruir toda a terra. Ainda assim, a aliança do arco-íris não impede uma
aliança do sangue, mesmo no caso de Noé. Três referências específicas dão toda
indicação de que Noé também conhecia a aliança de Deus com o homem pecador como
aquela do sangue – sim, de que a aliança do sangue já era uma parte inerente da
sua religião, antes do Dilúvio.
A primeira delas é o fato de que Noé
oferece sacrifícios de sangue tão logo sai da arca. Nós somos informados de que
“Noé construiu um altar para o Senhor e pegou de cada animal limpo e de cada
ave limpa, e ofereceu holocaustos sobre o altar” (Gn 8.20). Esta é a primeira
menção, na Bíblia, da construção de um altar; contudo, não temos qualquer razão
para duvidar de que a oferta de sacrifícios em altares retrocede ao próprio
início da história patriarcal. Na história do Dilúvio, temos também, pela
primeira vez, a distinção feita entre animais limpos e impuros. Tal distinção
pode muito bem retroceder ao começo da vida após a Queda; deveras, algumas distinções
se tornam inevitáveis, com a maldição pronunciada sobre a serpente. Note,
especialmente, que Deus mesmo proveu os animais para o sacrifício de Noé. Todos
os animais limpos foram enviados à arca em sete, três pares mais um, sendo o de
número ímpar para sacrifício. Veremos adiante que a verdadeira essência de todo
sacrifício concerne à aliança de sangue. Portanto, os sacrifícios de Noé são
nossas primeiras indicações de que ele já vivia com Deus sob os termos da
aliança de sangue.
A segunda indicação é o comentário de
Gênesis 8.21, quanto à reação do Senhor aos holocaustos de Noé. “E o Senhor
aspirou um suave cheiro.” Essa referência ao “suave cheiro” oriundo de
sacrifício ocorre aproximadamente quarenta vezes no Antigo Testamento, a maior
parte em Levítico e Números. Ela certamente tem um significado mais profundo do
que o conceito antropomórfico de que o Senhor aprecia o cheiro de gordura
queimada. O fato é que este mesmo Senhor, que aqui aprova o sacrifício de Noé,
pode ficar completamente enojado com o mesmo odor. Testemunhe a sua Palavra (Is
1.11):
[...] Estou farto
dos holocaustos de carneiros e da gordura de animais cevados e não me agrado do
sangue de novilhos, nem de cordeiros, nem de bodes. [...] Não continuei a
trazer ofertas vãs. (Cf. também Sl 40.6; 51.16,17).
Claramente, se o Senhor pode aprovar um
sacrifício e desaprovar outro, embora eles sejam externamente idênticos, então
deve haver um certo significado e propósito por detrás deles. Somente quando o
significado e propósito encontram a sua expressão no coração do ofertante, o
sacrifício leva o seu “suave cheiro” às narinas do Senhor. Se, então, o
sacrifício de Noé ganha tal aprovação divina, a implicação necessária é a de que
o significado verdadeiro, divinamente intencionado e o propósito do sacrifício
foram cumpridos naqueles feitos por Noé. Isso significa que Noé ofereceu seu
sacrifício com um entendimento completo e com uma apreciação humilde da aliança
de sangue.
A terceira indicação de que a aliança de
sangue já estava em vigor e de que ela detinha inteira significância para Noé
vem com o comando de Deus encontrado em Gn 9.3-6:
Tudo o que se move
e vive ser-vos-á para alimento; como vos dei a erva verde, tudo vos dou agora. Carne,
porém, com sua vida, isto é, com seu sangue, não comereis. Certamente,
requererei o vosso sangue, o sangue da vossa vida; de todo animal o requererei,
como também da mão do homem, sim, da mão do próximo de cada um requererei a
vida do homem. Se alguém derramar o sangue do homem, pelo homem se derramará o
seu; porque Deus fez o homem segundo a sua imagem.
Estas palavras, pronunciadas muito antes
da entrega da Lei de Deus no Sinai, não obstante, contêm todo elemento
necessário para uma apreciação completa do significado do sangue como o selo da
aliança da graça de Deus.
1. O sangue é vida. O derramamento de
sangue significa o derramamento da vida. “Verter o sangue de um homem” é o
mesmo que homicídio, ainda que o método de assassínio não tenha envolvido,
literalmente, a perda de sangue.
2. Uma profunda reverência aqui é
inculcada para o sangue, uma que – e nós temos toda razão para crer – antecedeu
o Dilúvio, embora talvez obscurecida em meio à maldade do mundo pré-diluviano.
O homem é expressamente permitido comer da carne de animais, mas o sangue é
excetuado de tal autorização. O sangue é tido por sagrado. Ele não deve ser
ingerido, sob o argumento de que ele é a vida.
3. A vida do homem é considerada
infinitamente mais preciosa do que a vida de qualquer animal. A razão é que ele
é a coroa da criação, feito à imagem de Deus. Assim, ao homem é dado poder de
matar animais e de comê-los; poder e domínio sobre a vida deles. Mas o ser
humano não possui poder sobre a sua própria vida ou do seu irmão. Tomar este
poder é usurpar da autoridade que Deus reserva para si, e a punição para isto é
a morte.
4. A negra sombra de Gênesis 3 recai sobre
esta passagem com implicações profundas: “No dia em que dela comeres certamente
morrerás.” “Porque fizeste isto [...] tu és pó e ao pó tornarás.” Sangue
significa vida, no entanto, somente enquanto ele não é visto, preso no corpo e
dando vida a ele. Porém, quando o sangue flui, quando é derramado diante dos
olhos dos homens, ele carrega uma mensagem, aquela do horror da morte. Noé ou
qualquer outro filho de Deus não podiam ver sangue, nem humano, nem animal, sem
que fossem lembrados de que a morte reside no mundo por causa do pecado, que a
própria vida deles é perdida, e de que eles são pecadores e que, portanto, não
possuem o direito de viver. Verdadeiramente, aqueles que viram tal
significância no sangue o abominariam, nem sonhariam ingeri-lo!
5. Também há esperança nesta passagem.
Embora a vida do homem esteja, de fato, perdida, Deus a considera um tesouro.
Mesmo que o homem tenha se tornado inimigo de Deus, ainda assim Deus lhe
concede domínio. E Deus não consegue se esquecer de que fez o homem à sua
própria imagem. Inerente a estas passagens está a mensagem da redenção. Por que
Deus se preocupa tanto com Noé e tão ricamente o ama e o abençoa? Será que Deus
está simplesmente brincando com o homem durante esta vida, esperando pelo
momento sadisticamente agradável de arrebatá-lo à morte pelos seus pecados?
Impossível. A contínua existência de Noé, o seu livramento da morte que todo o
mundo sofreu no Dilúvio, as bênçãos do domínio, o estado sacro da sua vida
diante de Deus, o comando para ser frutífero, multiplicar-se e repovoar a terra:
tudo isso indica que Deus, de uma maneira maravilhosa, superou a maldição do
pecado, aboliu o horror da morte, e ganhou para o homem vitória eterna. A
cabeça da serpente está esmagada. A vitória do diabo foi tirada dele. O homem
está salvo.
O significado da aliança de sangue, já
então conhecida por Noé, e, eu diria, aos patriarcas antes dele, é
poderosamente confirmada na aliança do Sinai. A passagem singular mais rica
acerca do assunto é Lv 17.10-14:
Qualquer homem da
casa de Israel ou dos estrangeiros que peregrinam entre vós que comer algum
sangue, contra ele me voltarei e o eliminarei do seu povo. Porque a vida da
carne está no sangue. Eu vo-lo tenho dado sobre o altar, para fazer expiação
pela vossa alma, porquanto é o sangue que fará expiação em virtude da vida. Portanto,
tenho dito aos filhos de Israel: nenhuma alma de entre vós comerá sangue, nem o
estrangeiro que peregrina entre vós o comerá. Qualquer homem dos filhos de
Israel ou dos estrangeiros que peregrinam entre vós que caçar animal ou ave que
se come derramará o seu sangue e o cobrirá com pó. Portanto, a vida de toda
carne é o seu sangue; por isso, tenho dito aos filhos de Israel: não comereis o
sangue de nenhuma carne, porque a vida de toda carne é o seu sangue; qualquer
que o comer será eliminado.
Aqui nós temos uma declaração clara,
repetida quatro vezes, da primária significância do sangue. “A vida está no
sangue.” “Ele [sangue] é a vida.” “O sangue é para a vida.” “A vida é o
sangue.” Este conceito, como nós temos visto, já definido em Gênesis 9, é
fundamental. Nenhuma referência religiosa ao sangue, na Bíblia, pode ser
entendida sem ele. Ele é a base das concepções religiosas do povo de Deus desde
o princípio dos tempos. Deveras, o medo supersticioso do sangue, evidente em
muitas religiões pagãs, talvez até a repulsa a ele que é quase uma parte da
“natureza humana”, pode bem ser traçado até este fato: que o sangue é vida.
Imagine Adão e Eva de pé ante o corpo do seu filho morto, Abel. Esta é a
primeira vez que eles viram a morte no homem, a primeira experiência do
derradeiro horror do pecado. Duas impressões inescapáveis vêm a eles diante de
tal visão: uma é a terrível quietude, a rigidez imóvel de um corpo sem vida; a
outra, é o sangue daquele assassinato entornado no chão. Lá, no sangue, está a
diferença entre a vida e a morte. A vida está no sangue. Quando ele é
derramado, a vida foge. E, involuntariamente, todo o horror da morte é
transferido ao sangue.
Tão proeminente é a ideia de que o
sangue (como significando tanto “vida” ou, mais frequentemente, “morte”,
dependendo do ponte de vista), se torna uma parte do vocabulário do povo de
Deus, sim, e de outras pessoas. A Bíblia está cheia de referências assim. É “a
voz do sangue de Abel” que clama a Deus do solo. Judas trai “sangue inocente.”
Pilatos afirma ser “inocente do sangue” de Jesus. Os judeus não podem usar as
trinta peças de prata no Templo, porquanto “isso é preço de sangue.” Raramente,
de fato, a palavra sangue é usada na Bíblia sem carregar o significado religioso
da morte.
Não há uma partícula de superstição pagã
nesta reverência da Bíblia pelo sangue. Ao invés, isso nos leva profundamente
ao coração da religião da Bíblia, tanto do Antigo Testamento como do Novo. A
preocupação principal de toda Escritura retrocede aos primeiros capítulos de
Gênesis e ao relato deles da queda do homem ao pecado. Não há nada mais sério
para o homem, nada mais a ser temido, do que a morte. Esta é o resumo e soma de
todo o mal do pecado. O objetivo inteiro da religião da Bíblia é o de desfazer
o mal da morte. Se o sangue é vida, então o derramamento dele, ou a morte,
inevitavelmente, terá um papel, não pequeno, mas grande naquela religião.
Ambos Lei e Evangelho estão contidos no
conceito de sangue: Lei, porque a visão do sangue deve sempre lembrar ao homem
que a morte, até mesmo a sua própria, é a realidade sombria dele e do mundo.
Enquanto a maldição da morte perdurar sobre si, ele está excluído de Deus,
condenado debaixo do pagamento justo pelo seu pecado. Por conseguinte, a
profunda reverência pelo sangue, como está inculcada na Lei. O sangue nunca
deve ser consumido. O caçador deve derramá-lo dos animais que ele abate,
derramá-lo à terra, e cobri-lo com pó. Toda visão de sangue infunde temor
religioso; pois, para Israel, o sangue, derramado acidentalmente ou não,
justamente ou injustamente, no altar ou no campo ou em casa, sempre carrega a
mensagem do pecado e da morte do homem.
Entretanto, o sangue também contém o mais
precioso Evangelho, como nós observamos destas palavras de Levítico 17: “Porque
a vida da carne está no sangue. Eu vo-lo tenho dado sobre o altar, para fazer
expiação pela vossa alma, porquanto é o sangue que fará expiação em virtude da
vida.” “Eu vo-lo tenho dado sobre o altar”, diz o Senhor. Este sangue é o
juramento da aliança da graça de Deus com o seu povo, uma aliança que se
origina, inteiramente, no amor de Deus, uma aliança que Deus “deu” e que o
homem pode somente recebê-la como um dom gratuito. Mas, se ela é recebida como
um dom gratuito, então o é pela fé. Por isso, nas palavras “Eu vo-lo tenho
dado” estão escondidos os dois conceitos do Novo Testamento da justificação: o sola
gratia e o sola fide. “Eu vo-lo tenho dado sobre o altar, para
fazer expiação pela vossa alma, porquanto é o sangue que fará expiação em
virtude da vida.” A palavra “expiação” significa uma cobertura, uma
proteção da ira e, portanto, salvação. Discutiremos isso ainda no próximo
capítulo. Aqui, todavia, observe, particularmente, a palavra “alma”. Às vezes
nós nos esquecemos de que o significado primário da palavra “alma” é,
simplesmente, “vida”. Deus diz que ele dá o sangue de animais no altar como uma
cobertura para a vida dos homens. Isto é, o animal derrama o seu sangue e morre
a fim de que os homens não tenham que morrer, mas possam encontrar vitória
sobre o pecado e sobre a morte. Aqui está o terceiro e grande princípio do Novo
Testamento da justificação: a Expiação Vicária, vida por vida, sangue por
sangue, morte por morte.
Mas tudo isso se centra no sangue. A
aliança de sangue é o meio gracioso de Deus de redimir o homem da morte e da
maldição dela. Ao mesmo tempo, o sangue da aliança é o meio gracioso de Deus
para proclamar aquela redenção pela palavra e pelo sinal, para que o homem
possa encontrar o seu conforto e crer nisso para a sua salvação.
II
O
Sangue da Expiação
No hebraico, a palavra que nós traduzimos
por “expiar” ou “fazer uma expiação” é kaphar. Ela é usada cento e uma
vezes no Antigo Testamento. Em só uma passagem ela ocorre no seu sentido
nativo, “encobrir”. É Gênesis 6.14, onde Noé é ordenado a “calafetar”, ou
“cobrir”, a arca por dentro e por fora com betume. Em todas as outras
passagens, kaphar toma o seu sentido moral e religioso de cobrir o
pecado. A definição mais clara é dada pela própria Escritura, conforme Lv
16.30:
Porque, naquele
dia, se fará expiação por vós [kaphar], para purificar-vos; e sereis
purificados de todos os vossos pecados, perante o SENHOR.
Um número de outras traduções da palavra,
a não ser “fazer uma expiação”, ocorrem na Versão Autorizada[2], e elas ajudam a clarear o
seu significado. Em Gn 32.20, Jacó diz: “Eu apaziguarei a ele [Esaú] com o
presente.” Em Dt 21.8, Moisés apela a Deus: “Sê misericordioso, Ó Senhor, para
com o Teu povo Israel.” Pv 16.14 usa kaphar no sentido de “pacificar” –
“um homem sábio o pacificará [i.e., o furor de um rei].” Outras traduções são
“perdoar”, “fazer reconciliação”, “absolver”, “purgar”, “ser limpo”.
Na grande maioria dos casos, no entanto, o
termo hebraico kaphar é traduzido com as palavras “fazer uma expiação”.
Mais ou menos setenta e cinco passagens, sendo a maioria delas em Levítico e
Números, expressam a ideia de que é o sangue do sacrifício que faz expiação
pela alma (i.e., a vida) do homem, tirando-o da morte, a qual é o salário da
sua rebelião contra Deus. Por isso, neste caso, Lv 17.11: “Porquanto é o sangue
que fará expiação em virtude da vida.”
Três substantivos derivados das formas de kaphar
podem ser mencionados nesta conexão. Um é kapporeth, utilizado
somente em um sentido, o qual indica aquilo que Lutero chama de Gnadenstuhl,
e o que a Versão Autorizada traduz pelo “propiciatório” da Arca da Aliança.
Dentro da arca se encontram as tábuas condenatórias da Lei de Deus. Encobrindo
tais tábuas está o kapporeth, literalmente, a “tampa” da caixa, porém,
como um tipo, “o que encobre” a transgressão do homem da Lei. Pois o kapporeth
representa a expiação de Deus e a sua misericórdia perdoadora, que anulam a
desobediência do homem, a sua culpa, e a sua morte. No propiciatório, como
veremos, o sacerdote asperge o sangue da expiação, a garantia de que a morte
que o homem trouxe a si mesmo é expiada vicariamente pela morte do animal
sacrificado. Esculpidos nas extremidades do kapporeth, com as suas asas
se alongando sobre ele, estão querubins. Lembramos que querubins foram
colocados com uma espada em chamas na entrada do Éden a fim de guardarem o
caminho que leva à árvore da vida, para que o homem não coma e viva para
sempre. Assim, a Arca representa, de novo, o duplo aspecto da aliança de Deus:
por um lado, a Lei, que intransigentemente condena o pecado e o pune com a
morte; por outro, o Evangelho, pelo qual o Deus de toda misericórdia encontra,
no sangue, o preço da expiação do homem.
O segundo substantivo derivado a partir de
kaphar é kippurim, o qual pode literalmente ser traduzido como
“expiações”. Ele é usado somente oito vezes e é a forma de substantivo padrão
para kaphar. O seu uso mais familiar está na frase yom kippurim,
o Dia da Expiação.
O terceiro substantivo é kopher,
geralmente traduzido por “resgate”. Teremos ocasião para nos referirmos a ele
no próximo capítulo, quando falarmos acerca do sangue da redenção.
Qualquer discussão quanto ao sangue da
expiação nos leva imediatamente para dentro de todo o sistema sacrificial
ordenando por Deus ao Seu povo Israel. Não precisamos discutir detalhadamente
os vários tipos de sacrifício. Contudo, um breve esboço do modo de procedimento
nas ofertas de sacrifícios é necessário. Podemos listar sete passos:
1. O animal a ser sacrificado é
cuidadosamente selecionado. Trinta e nove passagens indicam o quão importante é
que o animal seja perfeito, sem defeito. A mais detalhada lista de requisitos é
a dada em Lv 22.18-25.
2. O homem que traz o sacrifício coloca a
sua mão na cabeça do animal, a significar que este morre vicariamente por
aquele (Lv 1.4; 3.2, 8, 13; 4.4, 15, 24, 29).
3. O animal é morto por um corte na
garganta. O sangue é depositado em uma bacia (Ex 12.22; 24.6).
4. Uso cerimonial é feito com o sangue.
Aqui há ampla variação, dependendo do tipo e propósito do sacrifício. O sangue
é aspergido sobre o altar (Ex 24.6; Lv 1.5); colocado nos chifres do altar (Lv
16.18); aspergido sobre os vasos do altar e do Tabernáculo (Lv 16.16);
derramado na base do altar (Lv 4.7). Na consagração dos sacerdotes, ele é
colocado na ponta da sua orelha direita, nos dedões da sua mão direita e do seu
pé direito (Lv 8.23,24); e aspergido nas suas vestes (Lv 8.30). Uma aplicação
parecida do sangue é requerida na cerimônia de purificação de um leproso (Lv
14.14). Sangue é aspergido sobre o povo (Ex 24.8). No Dia da Expiação, ele é
aspergido sobre e à frente do propiciatório da Arca da Aliança no Santo dos
Santos (Lv 16.14). Na Páscoa, ele é posto com hissopo nas ombreiras e nas
vergas das portas das casas (Ex 12.7).
5. O animal é esfolado, a gordura e certas
partes de dentro são removidas, e a carcaça é cortada conforme um padrão
definido (Lv 1.6-17; 3.9-11).
6. Então o procedimento, mais uma vez,
varia bastante, de acordo com o tipo de sacrifício. Havia três tipos
principais, cada um com variações. Nas ofertas queimadas (Levítico 1), o animal
inteiro era queimado sobre o altar. No caso de ofertas de transgressão e pecado
(Levítico 4-7), somente a gordura e partes internas eram queimadas sobre o
altar. O resto era queimado no local das cinzas fora do arraial. Em alguns
casos, a carne da oferta pelo pecado, ou partes dela, era comida pelos
sacerdotes. Em outros (a propósito, quando a oferta era feita pelos pecados do
sacerdote ou quando o sangue era usado dentro do tabernáculo), o sacrifício era
inteiramente queimado. No caso de ofertas pacíficas (Lv 3; 7.11-38), que eram
efetivamente sacrifícios espontâneos de ações de graças e louvor, o peito e a
coxa direita eram comidos pelos sacerdotes; o restante da carne, pelo ofertante
e sua família, com a restrição de que somente aquele que estivesse moral e
cerimonialmente limpo poderia fazê-lo. A gordura e as partes internas eram
queimadas sobre o altar.
7. As cinzas das ofertas queimadas sobre o
altar eram levadas para fora do arraial até o local das cinzas, onde as ofertas
de pecado eram queimadas (Lv 4.12; 6.11).
O padrão inteiro do sacrifício, com a sua
significância, pode ser resumido a partir das cerimônias conectadas com o Dia
da Expiação, conforme apresentado em Levítico 16. Todos os sacrifícios
prescritos neste capítulo são, certamente, adicionais às ofertas queimadas de
carneiros da manhã e do entardecer, oferecidas diariamente durante o ano (Ex
29.38-44), às quais o fogo no altar nunca deveria se apagar (Lv 6.12, 13).
Cinco animais são envolvidos nos sacrifícios do Dia da Expiação.
O primeiro é um novilho, que Arão, o sumo
sacerdote (ou os sumo-sacerdotes, os seus filhos, após ele, v. 32[3]), oferece como um “oferta
pelo pecado, a qual é para si mesmo”, desse modo, fazendo “uma expiação para si
e para a sua casa (v. 6).” Arão leva um punhado de incenso, e um incensário de
brasas ardentes, para o Santuário por dentro do véu, e lá põe o incenso sobre o
fogo, para que a nuvem de fumaça cubra a Arca da Aliança e o propiciatório.
Então, Arão traz o sangue do novilho que ele acabou de matar e o asperge ante e
sobre o propiciatório, sete vezes (vv. 11-14). A gordura do novilho é
posteriormente queimada sobre o altar (v. 25), e a carne é queimada fora do
arraial.
A segunda oferta é um cabrito, uma oferta
pelo pecado do povo (v. 15). Dois bodes são selecionados originalmente, e se é
determinado por sorte qual deve ser sacrificado e qual será o bode emissário
(v. 8). O sangue do bode que é morto, como o do novilho, é trazido para dentro
do véu e aspergido sobre e diante do propiciatório. Esta aspersão de sangue faz
expiação pelo santuário, o qual é profanado pelos pecados do povo de Israel (v.
16). O sangue da aspersão também faz expiação pelo Tabernáculo e pelo altar
(vv. 16, 19), o qual, igualmente, precisa ser “purificado e santificado das
impurezas dos Filhos de Israel.” O sangue, tanto do novilho, quanto desse bode,
é posto sobre os chifres do altar (v. 18). A gordura do bode é queimada depois
com aquela do novilho sobre o altar, e a sua carne fora do arraial.
O terceiro animal envolvido nas cerimônias
do Dia da Expiação é o bode emissário. Arão põe ambas as mãos sobre a cabeça do
bode vivo e confessa sobre ele “todas as iniquidades dos Filhos de Israel e
todas as suas transgressões e todos os seus pecados, colocando-os sobre a
cabeça do bode”, e depois o envia carregado de todas as iniquidades deles para
o deserto (vv. 21, 22).
Os dois últimos animais são carneiros,
oferecidos agora como ofertas queimadas, o primeiro para se fazer expiação em
favor do próprio Arão, e o segundo, pelo povo (vv. 3, 5, 24). A significância e
aplicação completas das cerimônias do yom kippurim está resumida nos
últimos dois versículos de Levítico 16:
[...] fará [o Sumo
Sacerdote] expiação pelo santuário, pela tenda da congregação e pelo altar;
também a fará pelos sacerdotes e por todo o povo da congregação. Isto vos será
por estatuto perpétuo, para fazer expiação uma vez por ano pelos filhos de
Israel, por causa dos seus pecados.
Será observado, mesmo por este breve
resumo, que a concepção do sacrifício como algo que o homem entrega a Deus não
se aplica em nenhum lugar na teologia do Antigo Testamento. Para todas as
religiões pagãs, sacrifício significa que o homem se priva de alguma coisa ou
suporta sofrimento a fim de ganhar a piedade e o favor de Deus. Portanto,
sacrifícios pagãos se tornam, efetivamente, a tentativa do ser humano de
subornar Deus, ou colocá-lo em dívida consigo mesmo. Que ideias tais como essa
são uma abominação para Deus indica passagens como Rm 11.35: “Quem primeiro deu
a ele para que lhe venha a ser restituído?”
Além do mais, vê-se a rica passagem
poética do Sl 50.5-13, na qual Deus reprova o seu povo por imaginar que, nos
seus sacrifícios, eles estejam lhe dando algo – quando, na verdade, tudo o que
eles podem possivelmente entregar já pertence a Deus:
Congregai os meus
santos, os que comigo fizeram aliança por meio de sacrifícios.
Os céus anunciam a
sua justiça, porque é o próprio Deus que julga.
Escuta, povo meu,
e eu falarei; ó Israel, e eu testemunharei contra ti. Eu sou Deus, o teu Deus.
Não te repreendo
pelos teus sacrifícios, nem pelos teus holocaustos continuamente perante mim.
De tua casa não
aceitarei novilhos, nem bodes, dos teus apriscos.
Pois são meus
todos os animais do bosque e as alimárias aos milhares sobre as montanhas.
Conheço todas as
aves dos montes, e são meus todos os animais que pululam no campo.
Se eu tivesse
fome, não to diria, pois o mundo é meu e quanto nele se contém.
Acaso, como eu
carne de touros? Ou bebo sangue de cabritos? (Vide também Dt 10. 14, 16, 17).
Contudo,
até mesmo Israel, sempre que eles tivessem perdido o real significado do
sangue, inevitavelmente se enredavam para dentro desta falsa noção pagã de
sacrifício. E, de novo, uma vez que a sua concepção de sacrifício fosse, então,
degenerada para um piedoso suborno de Deus, toda verdadeira distinção entre
Jeová e os deuses das nações, como será facilmente demonstrado, é perdida:
Jeová é só outro deus. Não importa por qual nome Deus é chamado; sim, é-se
perfeitamente razoável sacrificar tanto para Baal nos altos lugares e a Jeová
no Templo.
O Profeta Miqueias possui uma poderosa
passagem (cap. 6.6-7) que mostra a estupidez de qualquer tentativa humana de
comprar o favor de Deus com sacrifícios:
Com que me
apresentarei ao SENHOR e me inclinarei ante o Deus excelso? Virei perante ele
com holocaustos, com bezerros de um ano?
Agradar-se-á o
SENHOR de milhares de carneiros, de dez mil ribeiros de azeite? Darei o meu
primogênito pela minha transgressão, o fruto do meu corpo, pelo pecado da minha
alma?
Essa é uma lista interessante das etapas
pelas quais um homem pode passar a fim de abafar a voz da consciência e ganhar
o favor de Deus. Primeiro ele virá com ofertas queimadas. Se isto não lhe
trouxer a certeza da paz com Deus, ele pode oferecer outras maiores: milhares
de carneiros, dez mil ribeiros de azeite. Se estes não satisfizerem, ele pode
ser levado a entregar para Deus aquilo que é de mais preciso para si, o maior
sacrifício que alguém consegue pensar de oferecer – e, que pena do pobre gentio
que, no seu esforço desesperado de comprar o favor de Deus, tem se demonstrado
inclinado a oferecê-lo – o filho primogênito, o fruto do corpo, pelo pecado da
alma. Todas essas tentativas pagãs de se quietar a consciência e de encontrar
paz com Deus são deveras patéticas, ainda mais porque residem na premissa falsa
e blasfema de que a misericórdia de Deus está à venda e de que o homem tem o
poder de merecer e comprar o favor de Deus.
O espírito de sacrifício na Lei do Antigo
Testamento não tem qualquer coisa em comum com tais concepções pagãs. Em nenhum
lugar se cria a mínima impressão de que, ao sacrificar a Deus, o homem esteja
lhe dando uma oferta. Ao invés, por meio do sacrifício, Deus concede os seus
dons ao homem. No sangue do sacrifício, Deus está derramando dos céus as
riquezas da sua graça perdoadora. Isto é o significado da palavra “expiação”.
Em Levítico, sempre de novo, encontramos uma declaração como a seguinte, que
resume a essência do sacrifício: “O sacerdote fará expiação por ele,
concernente ao seu pecado, e este lhe será perdoado” (Lv 4.20, 26, 31, 35
etc.). No sacrifício, o homem não se eleva a Deus. Pelo contrário, Deus é quem
desce àquele. Este fato tremendo está enfatizado em passagens como Lv 1.4: “E [ele,
o homem que traz uma oferta queimada voluntária] porá a mão sobre a cabeça do
holocausto, para que seja aceito a favor dele, para a sua expiação.” Note as
palavras “para que seja aceito o favor dele”. Deus, de maneira alguma, está
obrigado a qualquer coisa. A aceitação do sacrifício é um ato de pura graça, e
o homem permanece para sempre o devedor de Deus. Se não, veja a passagem chave
de Lv 17.11: “Porque a vida da carne está no sangue. Eu vo-lo tenho dado sobre
o altar, para fazer expiação pela vossa alma.” O sacrifício não é o meio do
homem de ganhar o favor de Deus. É o artifício de Deus de trazer a sua graça e
perdão ao homem; pois, diz Deus, “Eu vo-lo tenho dado sobre o altar, para fazer
expiação pela vossa alma”, i.e., pela vida que perdestes por causa do vosso
pecado.
Sendo assim, é perfeitamente coerente que
Deus exija humildade do seu povo. Nem por um instante sequer eles devem ter a
ousadia de achar que são melhores do que outras pessoas, de que eles mereceram
a graça. Em suas últimas palavras a Israel, Moisés se esforça demais para expor
a importância de se ter humildade total e singela diante de Deus, humildade tal
que concede a Jeová toda glória. Ele diz, assim, em Dt 7.6-8:
Porque tu és povo
santo ao SENHOR, teu Deus; o SENHOR, teu Deus, te escolheu, para que lhe fosses
o seu povo próprio, de todos os povos que há sobre a terra.
Não vos teve o
SENHOR afeição, nem vos escolheu porque fôsseis mais numerosos do que qualquer
povo, pois éreis o menor de todos os povos, mas porque o SENHOR vos amava e,
para guardar o juramento que fizera a vossos pais, o SENHOR vos tirou com mão
poderosa e vos resgatou da casa da servidão, do poder de Faraó, rei do Egito.
Ou, novamente, em Dt 9.4-6:
Quando, pois, o
SENHOR, teu Deus, os tiver lançado de diante de ti, não digas no teu coração:
Por causa da minha justiça é que o SENHOR me trouxe a esta terra para a
possuir, porque, pela maldade destas gerações, é que o SENHOR as lança de
diante de ti.
Não é por causa da
tua justiça, nem pela retitude do teu coração que entras a possuir a sua terra,
mas pela maldade destas nações o SENHOR, teu Deus, as lança de diante de ti; e
para confirmar a palavra que o SENHOR, teu Deus, jurou a teus pais, Abraão,
Isaque e Jacó.
Sabe, pois, que
não é por causa da tua justiça que o SENHOR, teu Deus, te dá esta boa terra
para possuí-la, pois tu és povo de dura cerviz.
Lembrai-vos e não
vos esqueçais de que muito provocastes à ira o SENHOR, vosso Deus, no deserto
[...]
Rebeldes fostes
contra o SENHOR, desde o dia em que vos conheci. (v. 24).
De fato, toda exortação para se temer o
Senhor, amá-lo de todo coração, alma, e entendimento, confiar nele, tomar
cuidado para não o esquecer, tudo isso é uma exortação para se entregar ao
Senhor toda glória e, portanto, demonstrar humildade e singeleza de coração.
Ademais, Deus exige arrependimento e
confissão de pecados em conexão com os sacrifícios que o seu povo oferece. Nós
vimos como Arão confessou os pecados do povo sobre o bode emissário no Dia da
Expiação. Ao homem que peca e que traz ofertas de transgressão para a sua
expiação se é requerido “confessar aquilo em que pecou” (Lv 5.5). Se, quando o
povo entrar na terra que Deus lhes dará, eles se tornarem orgulhosos e
esquecerem-no, então Deus irá afligi-los amargamente. No entanto, Deus promete
em Lv 26.40-42:
Mas, se
confessarem a sua iniquidade e a iniquidade de seus pais, na infidelidade que
cometeram contra mim, como também confessarem que andaram contrariamente para
comigo,
pelo que também
fui contrário a eles e os fiz entrar na terra dos seus inimigos; se o seu
coração incircunciso se humilhar, e tomarem eles por bem o castigo da sua iniquidade,
então, me
lembrarei da minha aliança com Jacó, e também da minha aliança com Isaque, e
também da minha aliança com Abraão, e da terra me lembrarei.
Com este pano-de-fundo podemos prontamente
resumir o estado de espírito com o qual o israelita deve oferecer o seu
sacrifício, se o faz para atingir o seu propósito, e trazer um cheiro doce às
narinas de Deus. Ele vem em humildade, como um pecador condenado, sabendo que
por sua transgressão e pela rebelião do seu coração contra Deus ele merece
somente punição e morte. Em tal humildade ele sabe que não existe bondade em si
próprio, a qual ele poderia oferecer a Deus como forma de expiar a sua culpa.
Ele oferece o seu sacrifício de sangue em paz e alegria, pois acredita na
promessa de Deus que Deus aceitará tal sacrifício como sinal da expiação
completa e derradeira pelo seu pecado. E, assim, ele vai para a sua casa
justificado, vitorioso sobre a maldição do pecado e da morte; justificado pela
graça de Deus, por meio da fé. É verdade, a fé não é diretamente mencionada em
conexão com as leis do sacrifício. Os filhos de Israel, no Sinai, não conhecem
qualquer formulação dogmática da doutrina da fé. Mesmo assim, a fé existe
poderosamente em todo este esquema da expiação. O povo é salvo pela fé assim
como nós somos. Pois a fé, no fim, é produzida no coração do homem, não por
meio do conhecimento da sua necessidade, nem mediante intensos esforços para
obtê-la, mas por meio da contemplação simples da Palavra de Deus e das suas
graciosas promessas.
A importância da fé está enfatizada pelas
muitas passagens nos Salmos e nos Profetas, as quais retratam a justa indignação
de Deus no tocante ao seu povo quando os sacrifícios são feitos, não em
arrependimento e fé, mas como uma questão de rotina religiosa – como os
sacrifícios pagãos pelos quais o homem busca subornar Deus em submissão a ele
mesmo. Portanto:
Pois não te
comprazes em sacrifícios; do contrário, eu tos daria; e não te agradas de
holocaustos.
Sacrifícios
agradáveis a Deus são o espírito quebrantado; coração compungido e contrito,
não o desprezarás, ó Deus.
Faze bem a Sião,
segundo a tua boa vontade; edifica os muros de Jerusalém.
Então, te
agradarás dos sacrifícios de justiça, dos holocaustos e das ofertas queimadas;
e sobre o teu altar se oferecerão novilhos. (Sl 51.16-19).
Aqui está claro que o sacrifício é
aceitável a Deus somente quando ele é oferecido em um espírito de humildade e
arrependimento, ou naquela fé que, através do sacrifício, recebe para a sua
salvação a promessa de Deus de perdão e expiação. Este mesmo pensamento está
expresso nos Profetas. Assim, Is 66.2,3:
[...] Mas o homem
para quem olharei é este: o aflito e abatido de espírito e que treme da minha
palavra.
O que imola um boi
é como o que comete homicídio; o que sacrifica um cordeiro, como o que quebra o
pescoço a um cão; o que oferece uma oblação, como o que oferece sangue de
porco; o que queima incenso, como o que bendiz a um ídolo. [...]
Os sacrifícios ordenados por Deus são horrivelmente
pervertidos quando oferecidos de qualquer maneira que não num espírito de
contrição, humildade, e fé na Palavra de Deus e suas promessas. Ou, de novo, Os
6.6: “Pois misericórdia quero, e não sacrifício, e o conhecimento de Deus, mais
do que holocaustos”. (Ver também Is 1.11ss; Jr 6.20; 7.21-23; Os 8.13).
Talvez seja importante notar até este
ponto, no entanto, que por toda a sua indignação contra a frieza irregenerada
com a qual Israel traz as suas ofertas, os Profetas não têm a intenção de
rejeitar a aliança sacrificial como tal. Que o significado interno do
sacrifício não foi mudado desde os dias de Moisés e Arão, isso é indicado em
passagens como as que seguem:
Porque no meu
santo monte [...] ali requererei as vossas ofertas e as primícias das vossas
dádivas, com todas as vossas coisas santas. Agradar-me-ei de vós como de aroma
suave [...]. (Ez 20.40,41).
[...] prepararão
os sacerdotes sobre o altar os vossos holocaustos e as vossas ofertas
pacíficas; e eu vos serei propício, diz o Senhor Deus. (Ez 43.27; Ver também Jr
33.11,18; Zc 14.24; Ml 3.3,4).
Outro pensamento adiante em conexão com o
Sangue da Expiação como o encontramos nos sacrifícios do Antigo Testamento. O
sangue de animais não tem valor intrínseco para expiar pelo pecado e pela morte
do homem. Em última análise, o sangue do animal é por demais barato para servir
como um substituto real por aquele do homem. Dessa forma, Hb 10.4: “Porque é
impossível que o sague de touros e de bodes remova pecados.” Este fato também é
reconhecido, indiretamente, no Antigo Testamento. O bode expiatório, do Dia da
Expiação, não derramou o seu sangue na morte; mesmo assim, está claramente
afirmado (Lv 16.10,21,22) que o sacerdote faz uma expiação com o bode
expiatório também pelos pecados do povo. Ademais, é interessante examinar a
extensão das ofertas pela culpa que são aceitáveis a Deus, como descritas em Lv
5.6-13. Primeiro, uma cordeira ou uma cabrita é requerida. Contudo, se o homem
não puder trazer uma cordeira, então poderá trazer duas rolas ou dois
pombinhos. Porém, se ele não puder trazer mesmo estes últimos, então trará a
décima parte de um efa de flor de farinha como oferta pelo pecado. Isto,
portanto, será queimado por fogo no altar, e, assim, o sacerdote fará expiação
por seu pecado e ele será perdoado. É evidente, então, que Deus não está
limitado, pela aliança que faz com o homem, ao sangue de animais. Ele pode
colocá-lo de lado. Ele pode expiar pelo pecado do homem sem sangue, como no
caso do bode expiatório, ou no caso da oferta de flor de farinha. Claramente, o
sangue não salva por seu próprio mérito. Ele não é realmente o preço pelo
pecado do homem. Ao invés, o sangue é o sinal, ou o símbolo, da aliança de
Deus, como o é diretamente denominado na instituição da Páscoa (Ex 12.13; cf.
Cap. V), e indiretamente com a circuncisão (Gn 17.11; cf. Cap. IV). Os
sacrifícios do Antigo Testamento são, por conseguinte, similares aos Sacramentos
do Novo Testamento. Da forma como Lutero pergunta “Como pode a água fazer tão
grandes coisas?”, aqui também nós podemos questionar “Como o sangue de animais
pode fazer tão grandes coisas?” E a resposta seria bastante parecida com a de
Lutero: “Não é o sangue, deveras, que as faz, mas a Palavra de Deus, a sua
ordem e promessa, as quais estão em e com o sangue, e a fé que confia nesta
Palavra de Deus no sangue.” Ainda assim, isto também deve ser acrescentado. Tal
como as promessas que Deus conecta ao Batismo e à Ceia do Senhor se debruçam no
preço que ele pagou pelo pecado do homem em Jesus Cristo, o seu Filho, da mesma
forma, as promessas que Deus conectou, no Antigo Testamento, aos sacrifícios do
seu povo, se repousam diretamente na verdade maravilhosa que Deus, ele mesmo,
na completude do tempo, oferecerá pelo homem o único sacrifício em toda
existência que literalmente e intrinsecamente é mais precioso que o homem e o
qual literalmente e intrinsecamente pode ser o substituto do homem na morte e
em tudo aquilo que esta implica. Aquele sacrifício é o próprio Deus, na pessoa
do seu unigênito Filho.
Esta verdade abençoada nos leva ao sangue
da expiação como o encontramos no Novo Testamento. É digno de nota que a
palavra “expiação”, embora muito comum no Antigo Testamento como a tradução da
Versão Autorizada para kaphar, é usada somente uma vez no Novo
Testamento, e ali como uma tradução do grego katallagee em Rm 5.11:
“[...] por intermédio de quem recebemos, agora, a reconciliação”[4]. Em todos os outros casos
em que katalasso e a sua forma substantivada katallagee, são usadas
no Novo Testamento, elas são traduzidas em inglês por “reconciliar” ou
“reconciliação”. Não há dano nesta inconsistência, por certo, visto que as
palavras em inglês “reconciliação” e “expiação” são sinônimas. A inconsistência
é encontrada também no Antigo Testamento, conforme a Versão Autorizada, onde
“reconciliar” ocorre sete vezes como uma tradução alternativa para kaphar
(normalmente traduzida “fazer uma expiação”).
Mais importante para nosso propósito é ver
como o hebraico kaphar é traduzido na Septuaginta, que comumente
estabelece o precedente com o qual os conceitos do Antigo Testamento encontram
a sua tradução no grego do Novo Testamento. A LXX traduz kaphar
consistentemente pelo verbo exilaskomai, “apaziguar, conciliar, ser
misericordioso”. Esta forma particular, entretanto, não ocorre no Novo
Testamento. Lá encontramos somente hilaskomai, sem o prefixo ex.
Mesmo isso ocorre só duas vezes. Uma passagem é o apelo do publicano no Templo:
“Deus, sê propício (hilastheeti) a mim, pecador” (Lc 18.13). A outra é
Hb 2.17: “Por isso mesmo, convinha que, em todas as coisas, se tornasse
semelhante aos irmãos, para ser misericordioso e fiel sumo sacerdote nas coisas
referentes a Deus e para fazer propiciação (eis to hilaskesthai) pelos
pecados do povo.” A forma substantivada hilasmos ocorre duas vezes em
1João: “Ele é a propiciação pelos nossos pecados” (2.2); e “Deus enviou o seu
Filho como propiciação pelos nossos pecados” (4.10). Um segundo substantivo
derivado é hilasteerion. Esta é a palavra usada consistentemente na LXX
para traduzir kapporeth, ou “propiciatório”. Ela ocorre neste mesmo
sentido em Hb 9.5. O outro lugar em que ela é usada é Rm 3.25, onde a Versão
Autorizada a traduz como hilasmos, “propiciação”[5]: “[...] a quem Deus
propôs, no seu sangue, como propiciação, mediante a fé.” Tendo em vista que a
palavra é usada tão pouco no Novo Testamento, provavelmente, nunca será
decisivamente estabelecido se hilasteerion, nesta passagem, está
adequadamente traduzido como “propiciação”, ou se deve ser entendido como
“propiciatório”. O último dá bom sentido quando sabemos o significado do kapporeth
no Antigo Testamento. Justamente como o propiciatório encobre a Lei e a ira de
Deus, assim também o faz Cristo. Justamente por possuir este poder porque é
aspergido com o sangue do sacrifício, assim também Cristo nos defende da ira de
Deus ao ser aspergido, por assim dizer, com o sangue do seu próprio sacrifício
de si mesmo. Justamente como os judeus eram para crer que a ira de Deus estava
aplacada por esta aspersão de sangue, nós devemos ter esta fé no sangue de
Cristo. Por derradeiro, justamente como o propiciatório simbolizou a presença
local e genuinamente real de Deus em meio ao seu povo (Ex 25.22; Lv 16.2),
assim, na pessoa de Cristo, Deus está verdadeiramente e concretamente presente
com os homens. Destarte, talvez seja o real intento de Paulo que nós devamos
traduzir as suas palavras “[...] a quem Deus propôs, no seu sangue, como
propiciatório, mediante a fé.”
De qualquer modo, o que quer que seja a
palavra, pela qual a ideia da expiação é transmitida do Antigo Testamento ao
Novo, isso tudo é claro e inequívoco: a expiação no Novo Testamento é sempre
ligada a Cristo; mais especificamente, ao sangue de Cristo, o qual se
oferece pelo pecado. Em Cristo, todo o conceito de sangue do Antigo Testamento
que faz expiação pela alma do homem vem ao seu clímax perfeito e ao seu
cumprimento. Este pensamento é o coração do Evangelho do Novo Testamento, e
ocorre, literalmente, dúzias de vezes. Observe nestas amostras a referência
constante ao sangue, i.e., à morte de Cristo, o seu sacrifício de si mesmo:
Rm 3.25: A quem
Deus propôs, no seu sangue, como propiciação, mediante a fé.
Rm 5.9: Logo,
muito mais agora, sendo justificados pelo seu sangue, seremos por ele
salvos da ira.
Rm 5.10: Fomos
reconciliados com Deus mediante a morte do seu Filho.
Rm 5.11: Por
intermédio de quem (Cristo) recebemos, agora, a reconciliação[6].
2Co 5.19: Deus
estava em Cristo reconciliando consigo o mundo.
2Co 5.21: Ele o
fez pecado por nós. (Obs.: Hamartia é a tradução regular do hebraico chattath,
significando tanto “pecado” ou “oferta pelo pecado”. Aqui, o significado pode
muito bem ser “oferta pelo pecado”).
Gl 1.4: O qual se
entregou a si mesmo pelos nossos pecados.
Ef 2.13: Vós, que
antes estáveis longe, fostes aproximados pelo sangue de Cristo.
Ef 5.2: Cristo
[...] se entregou a si mesmo por nós, como oferta e sacrifício a Deus, em
aroma suave.
Cl 1.20: Aprouve a
Deus que [...] havendo feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio dele, reconciliasse consigo mesmo
todas as coisas.
1Pe 1.2: [...]
Aspersão do sangue de Jesus Cristo.
1Jo 1.7: O sangue
de Jesus, seu Filho, nos purifica de todo pecado. (Relembre Lv 16.30: “Porque,
naquele dia, se fará expiação por vós, para purificar-vos; e sereis
purificados de todos os vossos pecados, perante o Senhor”).
1Jo 5.6: Este é
aquele que veio por meio de água e sangue.
Ap 1.5: [...]
Àquele que nos ama, e, pelo seu sangue, nos libertou dos nossos pecados.
Ap 7.14: São estes
os que [...] lavaram suas vestiduras e as alvejaram no sangue do Cordeiro.
Jo 1.29: Eis o
Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!
Nenhum judeu, cujo pano-de-fundo envolve
sacrifícios e a terminologia do Antigo Testamento, teria qualquer dúvida quanto
ao significado e relevância dessas referências. Todas apontam para Cristo como
o Cumprimento de todas as promessas de Deus, dadas no sangue do Antigo
Testamento. Cristo Jesus é o sacrifício final, o Fim de todos os sacrifícios. A
expiação vicária, a morte substitutiva pela morte do homem, é encontrada
somente nele. O seu sangue não é mais um símbolo ou sinal da aliança da graça.
A morte dele é a aliança. O homem é a coroa da criação. Assim sendo, em toda
ela não é possível encontrar qualquer substituto precioso o suficiente para
morrer a sua morte e aguentar o seu inferno em favor dele[7]. De além da criação, Deus,
o próprio Criador, entra em cena e, na pessoa do seu Filho, se torna um
sacrifício de tamanha glória e valor intrínseco que pode completamente e adequadamente
expiar por todo o pecado do mundo de todos os tempos.
O desenvolvimento mais poderoso deste
pensamento central é encontrado na Epístola aos Hebreus. Não podemos aqui fazer
um estudo exegético desta epístola maravilhosa. Existem, no entanto, cinco
grandes observações relacionadas à aliança de sangue, as quais eu gostaria de
apontar brevemente:
1. O autor de Hebreus reconhece, assim
como toda a Bíblia, que o grande e universal problema do homem é aquele do
pecado e da morte. Depois de glorificar a divindade de Cristo no primeiro
capítulo, ele se volta, no capítulo 2, à sua humanidade. Nos versos 14 e 15, o
autor define a necessidade básica da humanidade nestas palavras:
Visto, pois, que
os filhos têm participação comum de carne e sangue, destes também ele,
igualmente, participou, para que, por sua morte, destruísse aquele que tem o
poder da morte, a saber, o diabo, e livrasse todos que, pelo pavor da morte,
estavam sujeitos à escravidão por toda a vida.
A maldição de Deus contra o pecado não
pode ser ab-rogada. A maldição da morte deve ser suportada por completo. É para
carregar aquela maldição que Cristo, o Filho de Deus, assume a natureza humana.
Porém, acima de tudo, perceba a ênfase na morte como o problema mais
atemorizante da existência humana. Toda vida se torna inútil e sem frutos se o
homem deve morrer. A morte é o capataz amedrontador, que faz com que a vida,
por si só, seja um cativeiro e uma escravidão. Liberdade da morte, vitória
sobre a morte: isso é a necessidade grandiosa e universal do homem.
2. O autor desta epístola reconhece que
vitória sobre a morte não pode ser adquirida senão por meio de morte. A aliança
da graça de Deus, por seu sentido e propósito próprios, requer a morte, isto é,
o derramamento de sangue. Este pensamento, já expressado na passagem
supramencionada, é desenvolvido em Hb 9.16-22[8]: “Porque, onde há
testamento, é necessário que intervenha a morte do testador; pois um testamento
só é confirmado no caso de mortos; visto que de maneira nenhuma tem força de
lei enquanto vive o testador.”
A partir da palavra “testamento”, o autor
deduz que a morte é necessária. O fato de que Deus, o Testador, faz uma “lista
de vontades” ou um “testamento” com homem é uma indicação clara da necessidade
de a morte ocorrer: sim, mesmo aquele Deus, o Testador, espera morrer a fim de
trazer à realidade o Testamento em favor dos homens. Deve ser observado que
esta aplicação da palavra “testamento”, enquanto inerente ao grego diatheekee,
não está diretamente associada com a palavra hebraica berith. Todavia,
ela serve, certeiramente, para ilustrar a necessidade da morte: fato este que o
autor procede para provar diretamente, tendo por base as Escrituras do Antigo
Testamento (especialmente Êxodo 24):
Pelo que nem a
primeira aliança foi sancionada sem sangue; porque, havendo Moisés proclamado
todos os mandamentos segundo a lei a todo o povo, tomou o sangue dos bezerros e
dos bodes, com água, e lã tinta de escarlate, e hissopo e aspergiu não só o
próprio livro, como também sobre todo o povo, dizendo: Este é o sangue da
aliança, a qual Deus prescreveu para vós outros. Igualmente também aspergiu
com sangue o tabernáculo e todos os utensílios do serviço sagrado. Com efeito,
quase todas as coisas, segundo a lei, se purificam com sangue; e, sem
derramamento de sangue, não há remissão.[9]
A referência no último verso à
“purificação” e à “remissão” através do sangue dá a entender, novamente, que é
o pecado do homem que enseja a sua morte, e que a vitória sobre ela vem com a
remissão do pecado. Ainda assim, tal remissão, como demonstrado pela Lei
Cerimonial inteira do Antigo Testamento, é possível somente mediante o
derramamento de sangue, isto é, por meio da morte.
3. O autor é cristalino ao afirmar que o
sangue de animais, no Antigo Testamento, não possui valor intrínseco para
livrar o homem do pecado e da morte. Ele é apenas um sinal, apontando para o
sacrifício de Cristo. Sim, mesmo os pecados cometidos debaixo da Antiga Aliança
estão efetivamente e realmente purificados, não pelo sangue dos sacrifícios de
animais, mas pelo sangue de Cristo. Nessa toada, Hb 9.13-15:
Portanto, se o
sangue de bodes e de touros e a cinza de uma novilha, aspergidos sobre os
contaminados, os santificam, quanto à purificação da carne, muito mais o sangue
de Cristo, que, pelo Espírito eterno, a si mesmo se ofereceu sem mácula a Deus,
purificará a nossa consciência de obras mortas, para servirmos ao Deus vivo!
Por isso mesmo, ele é o Mediador da nova aliança, a fim de que,
intervindo a morte para remissão das transgressões que havia sob a primeira
aliança, recebam a promessa da eterna herança aqueles que têm sido
chamados.
Dessa forma, quando os santos do Antigo
Testamento escaparam da ira de Deus sobre os pecados deles, isso não ocorreu
porque Deus fracamente fechou os seus olhos e contrariou a sua Lei divina. Pelo
contrário, eles puderam ser perdoados por um Deus justo, em vista da
propiciação de sangue de Cristo, o sacrifício perfeito a vir. Esta é a
maravilha de Deus, o qual permanece justo e, mesmo assim, é o Justificador
daquele que crê em Jesus (Rm 3.26).
A inadequação dos sacrifícios do Antigo
Testamento está enfatizada também em Hb 10.1-4:
Ora, visto que a
lei tem sombra dos bens vindouros, não a imagem real das coisas, nunca
jamais pode tornar perfeitos os ofertantes, com os mesmos sacrifícios que, ano
após ano, perpetuamente, eles oferecem. Doutra sorte, não teriam cessado de ser
oferecidos, porquanto os que prestam culto, tendo sido purificados uma vez por
todas, não mais teriam consciência de pecados? Entretanto, nesses sacrifícios
faz-se recordação de pecados todos os anos, porque é impossível que o sangue
de touros e de bodes remova pecados.
4. Jesus Cristo, pelo seu sacrifício de si
mesmo, é o Fim de todos os sacrifícios de animais. Ele próprio é santo,
separado dos pecadores, sem defeito ou mancha. Por isso, ele não precisa, como
o sumo sacerdote do Antigo Testamento, primeiro fazer uma oferta para si. Sendo
sem pecado, ele não está sujeito à morte e, portanto, não precisa que qualquer
um morra em seu favor. Ainda assim, ele, o Filho de Deus sem pecado, se oferece
voluntariamente à morte, uma vez, e por todos os homens de todos os tempos. A partir
de ali, nenhum outro sacrifício, nenhum outro sangue, é necessário. Pois o
preço do pecado do mundo foi pago efetivamente e por completo até o fim do
mundo. Nesse sentido, Hb 7.26,27:
Com efeito, nos
convinha um sumo sacerdote como este, santo, inculpável, sem mácula, separado
dos pecadores e feito mais alto do que os céus, que não tem necessidade, como
os sumos sacerdotes, de oferecer todos os dias sacrifícios, primeiro, por seus
próprios pecados, depois, pelos do povo; porque fez isto uma vez por todas,
quando a si mesmo se ofereceu.
A mesma ideia está expressada em 9.25-28:
Nem ainda para se
oferecer a si mesmo muitas vezes, como o sumo sacerdote cada ano entra no Santo
dos Santos com sangue alheio. Ora, neste caso, seria necessário que ele tivesse
sofrido muitas vezes desde a fundação do mundo; agora, porém, ao se cumprirem os
tempos, se manifestou uma vez por todas, para aniquilar, pelo sacrifício
de si mesmo, o pecado. E, assim como aos homens está ordenado morrerem uma só
vez, vindo, depois disto, o juízo, assim também Cristo, tendo-se oferecido uma
vez para sempre para tirar os pecados de muitos
Ver também o capítulo 10.10,12,14:
[...] Temos sido
santificados, mediante a oferta do corpo de Jesus Cristo, uma vez por todas.
[...] Jesus, porém, tendo oferecido, para sempre, um único sacrifício pelos
pecados, assentou-se à destra de Deus. [...] Porque, com uma única
oferta, aperfeiçoou para sempre quantos estão sendo santificados.
5. O autor aos hebreus aponta que a
própria natureza de tamanho sacrifício vicário pelo sangue de Cristo pelos
nossos pecados requer que creiamos nisso, que nós o recebamos pela fé. Por
conseguinte, considere as seguintes referências espalhadas no décimo capítulo:
Tendo, pois,
irmãos, intrepidez para entrar no Santo dos Santos, pelo sangue de Jesus,
[...]aproximemo-nos,
com sincero coração, em plena certeza de fé, tendo o coração purificado
de má consciência e lavado o corpo com água pura. Guardemos firme a confissão
da esperança, sem vacilar, pois quem fez a promessa é fiel. (vv.
19,22,23).
Todavia, o meu
justo viverá pela fé; [...] Nós, porém, não somos dos que retrocedem
para a perdição; somos, entretanto, da fé, para a conservação da alma.
(vv. 38,39).
Visto que a expiação do homem custou um
preço tão alto, o sério aviso de perigo também está presente de que ela não
deve ser desprezada:
Sem misericórdia
morre pelo depoimento de duas ou três testemunhas quem tiver rejeitado a lei de
Moisés. De quanto mais severo castigo julgais vós será considerado digno aquele
que calcou aos pés o Filho de Deus, e profanou o sangue da aliança com o
qual foi santificado, e ultrajou o Espírito da graça? (vv. 28,29).
Horrível coisa é
cair nas mãos do Deus vivo. (v. 31).
Muito se atribui à Expiação. O sangue da
expiação é o sangue da aliança de um Deus gracioso. No Antigo
Testamento, ele é o sangue que Deus concedeu ao homem sobre o altar para fazer
expiação por sua alma (Lv 17.11). No Novo Testamento, ele é o sangue de Jesus
Cristo, o seu Filho, que nos limpa de todo pecado (1Jo 1.7). No entanto,
essencialmente, existe apenas uma aliança, um testamento, uma maneira de ser
salvo. A sua origem é a pura, imerecida, graça de Deus ao homem pecador. O seu
preço é sangue. Debaixo da antiga aliança, o preço é o simbólico sangue de
animais. É como dinheiro em papel: este não tem valor em si próprio; mesmo
assim, possui poder de compra real, não obstante, porque a palavra do governo
corrobora isso. Por detrás do sacrifício de animais, e da dádiva do poder de
expiação que estes sacrifícios ganham, está a Palavra de Deus, oferecendo ao
homem o sangue de Cristo, o qual é eternamente precioso, sua morte eternamente
capaz de livrar todos os homens do poder da morte, haja vista que ele é o Filho
de Deus. Finalmente, o único modo de salvação na Bíblia requer nada além do que
simples, confiante, fé em arrependimento.
A salvação por graça, pelo motivo do
sangue, mediante a fé. Esta é a salvação de Noé e dos patriarcas antediluvianos
antes dele; de Abraão, de Moisés, de Davi, de Paulo, de cada um de nós. Esta é
a única verdadeira religião de todos os tempos.
Nova Orleans, La.
[1] As traduções de passagens bíblicas
para a Língua Portuguesa constantes neste artigo – originalmente escrito em
inglês e no qual o seu autor se utilizou da King James Version para a
citação de textos da Escritura – foram com base na versão Almeida Revista e
Atualizada, a não ser aquelas expressamente sinalizadas em notas de rodapé, nas
quais o tradutor preferiu transcrevê-las a partir da Língua Inglesa.
[2] King James Version. Todas
as citações neste parágrafo foram livremente traduzidas para o vernáculo a
partir do inglês.
[3] O tradutor supõe que, na verdade,
o autor queira se referir ao verso 3, do capítulo 16, de Levítico.
[4] Em invés da palavra “reconciliação”,
como citada aqui, a Versão Autorizada da King James utiliza o termo
“atonement”, i.e., “expiação”, dando sentido ao argumento do autor.
[5] Assim como na versão em Língua
Portuguesa utilizada nesta tradução.
[6] O texto em inglês traz “expiação”.
[7]
O autor quer dizer que não há
qualquer outro ser na esfera da criação que possa substituir o homem na morte e
inferno deste (i.e., do homem). Apesar da ambiguidade na tradução para o
vernáculo, o texto em inglês traz o pronome masculino “his” (e.g.: his death;
his hell), sendo clara, portanto, a referência à “morte do homem” e ao “inferno
do homem”.
[9]
Lembre-se que as palavras
“aliança” e “testamento” se equivalem aqui. O texto em inglês somente traz a
palavra “testament” para ambos os casos.
[10] O tradutor desconhece a suposta
continuação deste ensaio.
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