Por Padre John W. Fenton
Nota do editor: Este artigo faz parte de uma série de publicações de outubro de 2017 sobre a Reforma e o Protestantismo, escritas por autores e escritores convidados do site Orthodox and Heterodoxy que comemoraram o 500° aniversário da fixação das 95 Teses de Martinho Lutero na porta da Igreja em Wittenberg, em 31 de outubro de 1517. Os artigos são escritos por cristãos ortodoxos e discutem não só a Reforma como um evento histórico, mas também a herança espiritual que emanou dela. O texto foi traduzido por Denício M. Godoy com autorização do autor.
Nos primeiros dias da Reforma, Martinho Lutero e outros reformadores protestantes apelaram à Igreja Ortodoxa em apoio às reivindicações contra a Igreja de Roma. Estes apelos foram indiretos, com a intenção de reforçar seus argumentos de que as inovações romanas se desviaram da fé dos Apóstolos. Os luteranos, em particular, não viam a si mesmos como separados ou formando uma nova "denominação", mas como os legítimos herdeiros do patrimônio ocidental e, portanto, a continuação da Igreja Ocidental.
Por esta razão, dentro da primeira geração da Reforma, teve início um diálogo entre os principais luteranos (o maior grupo protestante) e o Patriarca de Constantinopla. Visto que suas propostas e práticas litúrgicas, doutrinárias e morais eram as menos radicais, o pressuposto luterano inicial era de que havia um acordo doutrinário com os ortodoxos, e que qualquer diferença poderia ser facilmente esclarecida. Como a história mostra, esse pressuposto foi presunçoso; mas, pelo menos, deu início a um diálogo que continuou nos últimos tempos.
A história desse diálogo começa menos de 100 anos depois da última tentativa de uma reunificação das igrejas de Constantinopla e Roma no Concílio de Florença (1438-1445). Em 1517, Martinho Lutero conclamou publicamente a reforma nas igrejas ocidentais de várias aberrações e desvios morais, eclesiásticos e doutrinários. Inicialmente, se concentrou em abusos pastorais relacionados, em particular, com o sacramento da penitência e a vida de arrependimento. Quando publicou suas 95 teses para o debate, esperava o apoio do pontífice romano porque entendia que não estava oferecendo inovações, simplesmente correções.
Não se sabe até que ponto este jovem e recente professor de uma universidade recém criada conhecia o Concílio de Florença. Mas pode-se supor com segurança que, como doutor de teologia, ele sabia de sua existência e talvez tivesse lido ou ouvido sobre alguns de seus atos. Em todo caso, com o tempo, Lutero e seus colegas eruditos fariam referência, desde o início e em casos significativos, à "Igreja Grega", como eles a chamavam, para apoiar seus argumentos.
De fato, apenas dois anos após a publicação de suas 95 Teses, depois de um famoso debate em Leipzig com Johann Eck, Lutero "escreveu que defendeu vigorosamente a Igreja Ortodoxa contra as declarações difamatórias de Eck de que a Igreja Grega havia perdido a fé cristã depois da queda do Império Bizantino." (Mastrantonis, 10 n.1) Mais tarde, naquele mesmo ano, ele também apontou para a Igreja Ortodoxa para apoiar suas reivindicações contra a supremacia papal, o purgatório, a recepção apenas do Corpo de Cristo na Eucaristia, a proibição de celebrar as Divinas Liturgias (Missas) sem ninguém presente, e a noção do sacrifício eucarístico como propiciatório (em vez de um sacrifício de louvor e ação de graças).
Esses apelos à "Igreja Grega" foram repetidos não apenas por Lutero, mas também por seus colegas, e alguns entraram no Livro de Concórdia, ao qual todo pastor e paróquia luterana deve formalmente jurar fidelidade. O propósito desses apelos era indicar que o "partido evangélico" (como eram conhecidos inicialmente) não estava fazendo nada de novo, e que a própria Roma havia se afastado da fé que uma vez foi entregue. Embora Lutero, em particular, e a maioria de seus colegas nunca tenha tido contato direto com bispos ortodoxos ou teólogos, eles certamente sabiam sobre eles, pelo menos através dos escritos patrísticos gregos, e os primeiros luteranos assumiram e esperavam que as igrejas orientais tivessem mantido, sem abuso ou desvio, a velha fé cristã.
Dados esses apelos à Igreja Grega, as tentativas dos luteranos nascentes de entrar em contato com a Igreja Ortodoxa não parecem improváveis. Se isso aconteceu, é cada vez mais desconhecido, apesar da repetida história de que Philipp Melanchthon, o "braço direito" de Lutero, trabalhou com o diácono ortodoxo Demetrios Mysos para traduzir a confissão de Augsburgo para o grego. O que é certo é que não há registro de correspondência, e há um escasso conhecimento por parte de vários patriarcas ortodoxos sobre os protestantes até 30 anos após a morte de Lutero.
Na década de 1570, quando os luteranos estavam consolidando seus ensinamentos, destacados teólogos luteranos escreveram ao Patriarca de Constantinopla, enviando-lhe uma cópia da Confissão de Augsburgo (o documento primário e constitutivo do luteranismo). Esse esforço foi liderado por Jacob Andreae, um dos principais estudiosos luteranos, professor de teologia e chanceler da principal universidade luterana de Tübingen e autor de várias declarações anti-calvinistas que culminaram no Livro de Concórdia.
Além de seus colegas universitários, Andreae foi acessorado por Stephen Gerlach, seu capelão escolhido à dedo na embaixada alemã em Constantinopla. Esses líderes luteranos "tinham algum conhecimento da Igreja Ortodoxa, embora não tivessem conhecimento da ortodoxia contemporânea devido a... queda do Império Bizantino" em 1453. (Mastrantonis, 9-10) No entanto, iniciaram uma conversa com o patriarca, porque acreditavam que a Igreja Ortodoxa se manteve fiel aos Concílios Ecumênicos, evitando as inovações da igreja romana.
A correspondência foi dirigida por um pequeno grupo de teólogos luteranos e o erudito patriarca Jeremias, que escreveu suas respostas depois de consultar vários assessores. Ele seguiu o esboço dos artigos de fé e prática encontrados na Confissão de Augsburgo. As cartas consistiam em três intercâmbios oficiais (e uma série de cartas auxiliares), que eram pontuais, mas cordiais e educadas. O terreno comum era fácil de encontrar, incluindo a doutrina de Cristo, o mal causado pelos humanos, o pecado ancestral e sua transmissão, a perpétua virgindade de Maria, a eficácia do batismo, o abuso do primado e da supremacia papal, concessão do clero casado e comunhão em ambas as espécies. (Para uma lista mais detalhada de semelhanças e diferenças na correspondência, ver Mastrantonis, 20-24.) Estes e outros pequenos pontos de concordância,
À medida que o diálogo avançava, duas questões subjacentes se tornaram evidentes. Primeiro, os ortodoxos aceitaram muito mais ensinamentos e práticas romanas do que os luteranos esperavam; por exemplo, o número e a natureza dos sacramentos, as intercessões aos santos e uma compreensão laudatória de ícones, relíquias e monasticismo. Segundo, os luteranos mantiveram vários ensinamentos e práticas romanas que haviam sido precipitadas ou evoluídas após o Grande Cisma; ou seja, a aceitação do filioque, o uso de pão sem fermento, questões que giram em torno da predestinação e da rejeição da comunhão às crianças.
Contudo, os pontos mais agudos foram aqueles que seriam de se esperar: os luteranos recusaram-se a aceitar as escrituras dos santos pais como interpretando corretamente as Escrituras, a menos que "a tradição esteja de acordo com as Escrituras"; e os ortodoxos se negaram a aceitar os entendimentos claramente definidos dos luteranos sobre justificação e livre arbítrio. Entre eles, esta crítica dos teólogos luteranos é surpreendente aos olhos ortodoxos:
O diálogo foi desejado e iniciado pelos luteranos porque eles buscavam o acordo do patriarca que mantinha a fé que sempre foi crida. Os ortodoxos, por outro lado, já não estavam em posição de buscar a reunificação ou o contato contínuo com o Ocidente, de modo que tinham pouco ou nenhum conhecimento em primeira mão dos problemas gerais e detalhes da disputa.
O patriarca e seus acessores aparentemente não se opuseram à conversa e não deram a menor ideia de que tomariam cuidado para não ofender a sensibilidade romana. Os luteranos, por outro lado, com demasiada frequência parecem ter lido as respostas e argumentos do patriarca dentro das categorias e contexto de seu conflito com Roma, em vez de supor que uma linguagem semelhante implicava categorias e conclusões semelhantes.
Embora ajudada pelo contato pessoal e pela correspondência complementar de Gerlach, nenhuma das partes parece ter feito um esforço para investigar as razões de certas formulações doutrinárias, por exemplo, o contexto para a compreensão luterana do "livre-arbítrio", ou a matiz ortodoxa em invocar os santos além de um sistema medieval de méritos. Além disso, nenhuma das partes pareceu usar as áreas de acordo como base para entender as áreas em disputa.
O mais lamentável é que nenhum dos lados aparentemente tentou colocar as fórmulas doutrinárias dentro de um contexto litúrgico, experimentando ou compreendendo o culto mútuo. Sem dúvida, esse único esforço teria levantado outros problemas, por exemplo, como os ortodoxos resolveram o aparente conflito entre Cristo como o único Salvador, enquanto ofereciam excessivo louvor a Maria, ou como os luteranos facilmente presumiam clivar o cânon da missa.
Apesar das várias deficiências, o intercâmbio apresenta um padrão de diálogo respeitoso e humilde que não passa despercebido, mas lida honestamente com diferenças significativas. Também subtilmente destaca muitas áreas de concordância entre luteranos e ortodoxos, que podem ser a base de qualquer conversa bem intencionada.
Esta conversa, eu sugiro, acontece melhor não internacionalmente entre representantes especialmente selecionados, mas em um nível local onde o desejo não é tanto "negociar", mas entender e aprender um do outro em um espírito de respeito mútuo, como demonstrou o Patriarca Jeremias e os teólogos de Tübingen e, em um exemplo mais recente, Changing Churches por Mickey Mattox e o Padre Anthony (AG) Roeber.
Fontes: George Mastrantonis, Augsburg and Constantinople.
Jaroslav Pelikan, The Spirit of Eastern Christendom (The Christian Tradition, volume 2).
Sobre o autor: O Reverendíssimo John W. Fenton é pároco da Igreja Ortodoxa de São Miguel em Whittier, Califórnia, e assistente do Vigário Geral do Rito Ocidental de Antioquia. Ele foi pastor luterano por 16 anos.
Publicado Originalmente: https://blogs.ancientfaith.com/orthodoxyandheterodoxy/2017/10/03/lutherans-greek-church/
Na década de 1570, quando os luteranos estavam consolidando seus ensinamentos, destacados teólogos luteranos escreveram ao Patriarca de Constantinopla, enviando-lhe uma cópia da Confissão de Augsburgo (o documento primário e constitutivo do luteranismo). Esse esforço foi liderado por Jacob Andreae, um dos principais estudiosos luteranos, professor de teologia e chanceler da principal universidade luterana de Tübingen e autor de várias declarações anti-calvinistas que culminaram no Livro de Concórdia.
Além de seus colegas universitários, Andreae foi acessorado por Stephen Gerlach, seu capelão escolhido à dedo na embaixada alemã em Constantinopla. Esses líderes luteranos "tinham algum conhecimento da Igreja Ortodoxa, embora não tivessem conhecimento da ortodoxia contemporânea devido a... queda do Império Bizantino" em 1453. (Mastrantonis, 9-10) No entanto, iniciaram uma conversa com o patriarca, porque acreditavam que a Igreja Ortodoxa se manteve fiel aos Concílios Ecumênicos, evitando as inovações da igreja romana.
A correspondência foi dirigida por um pequeno grupo de teólogos luteranos e o erudito patriarca Jeremias, que escreveu suas respostas depois de consultar vários assessores. Ele seguiu o esboço dos artigos de fé e prática encontrados na Confissão de Augsburgo. As cartas consistiam em três intercâmbios oficiais (e uma série de cartas auxiliares), que eram pontuais, mas cordiais e educadas. O terreno comum era fácil de encontrar, incluindo a doutrina de Cristo, o mal causado pelos humanos, o pecado ancestral e sua transmissão, a perpétua virgindade de Maria, a eficácia do batismo, o abuso do primado e da supremacia papal, concessão do clero casado e comunhão em ambas as espécies. (Para uma lista mais detalhada de semelhanças e diferenças na correspondência, ver Mastrantonis, 20-24.) Estes e outros pequenos pontos de concordância,
À medida que o diálogo avançava, duas questões subjacentes se tornaram evidentes. Primeiro, os ortodoxos aceitaram muito mais ensinamentos e práticas romanas do que os luteranos esperavam; por exemplo, o número e a natureza dos sacramentos, as intercessões aos santos e uma compreensão laudatória de ícones, relíquias e monasticismo. Segundo, os luteranos mantiveram vários ensinamentos e práticas romanas que haviam sido precipitadas ou evoluídas após o Grande Cisma; ou seja, a aceitação do filioque, o uso de pão sem fermento, questões que giram em torno da predestinação e da rejeição da comunhão às crianças.
Contudo, os pontos mais agudos foram aqueles que seriam de se esperar: os luteranos recusaram-se a aceitar as escrituras dos santos pais como interpretando corretamente as Escrituras, a menos que "a tradição esteja de acordo com as Escrituras"; e os ortodoxos se negaram a aceitar os entendimentos claramente definidos dos luteranos sobre justificação e livre arbítrio. Entre eles, esta crítica dos teólogos luteranos é surpreendente aos olhos ortodoxos:
É evidente para nós… que você tem maior consideração pelas tradições da Igreja que você recebeu por sucessão, de mão em mão; e nada de tudo que você herdou de seus pais, você aceita de bom grado. Tradições e ethos na Igreja ... que entendemos que estavam em uso até mesmo na época dos Apóstolos na Igreja Primitiva ... nós não rejeitamos de todo, mas nós os praticamos de bom grado se, de fato, eles são úteis para as necessidades da Igreja de nosso tempo. (Mastrantonis, 255)
O diálogo foi desejado e iniciado pelos luteranos porque eles buscavam o acordo do patriarca que mantinha a fé que sempre foi crida. Os ortodoxos, por outro lado, já não estavam em posição de buscar a reunificação ou o contato contínuo com o Ocidente, de modo que tinham pouco ou nenhum conhecimento em primeira mão dos problemas gerais e detalhes da disputa.
O patriarca e seus acessores aparentemente não se opuseram à conversa e não deram a menor ideia de que tomariam cuidado para não ofender a sensibilidade romana. Os luteranos, por outro lado, com demasiada frequência parecem ter lido as respostas e argumentos do patriarca dentro das categorias e contexto de seu conflito com Roma, em vez de supor que uma linguagem semelhante implicava categorias e conclusões semelhantes.
Embora ajudada pelo contato pessoal e pela correspondência complementar de Gerlach, nenhuma das partes parece ter feito um esforço para investigar as razões de certas formulações doutrinárias, por exemplo, o contexto para a compreensão luterana do "livre-arbítrio", ou a matiz ortodoxa em invocar os santos além de um sistema medieval de méritos. Além disso, nenhuma das partes pareceu usar as áreas de acordo como base para entender as áreas em disputa.
O mais lamentável é que nenhum dos lados aparentemente tentou colocar as fórmulas doutrinárias dentro de um contexto litúrgico, experimentando ou compreendendo o culto mútuo. Sem dúvida, esse único esforço teria levantado outros problemas, por exemplo, como os ortodoxos resolveram o aparente conflito entre Cristo como o único Salvador, enquanto ofereciam excessivo louvor a Maria, ou como os luteranos facilmente presumiam clivar o cânon da missa.
Apesar das várias deficiências, o intercâmbio apresenta um padrão de diálogo respeitoso e humilde que não passa despercebido, mas lida honestamente com diferenças significativas. Também subtilmente destaca muitas áreas de concordância entre luteranos e ortodoxos, que podem ser a base de qualquer conversa bem intencionada.
Esta conversa, eu sugiro, acontece melhor não internacionalmente entre representantes especialmente selecionados, mas em um nível local onde o desejo não é tanto "negociar", mas entender e aprender um do outro em um espírito de respeito mútuo, como demonstrou o Patriarca Jeremias e os teólogos de Tübingen e, em um exemplo mais recente, Changing Churches por Mickey Mattox e o Padre Anthony (AG) Roeber.
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Fontes: George Mastrantonis, Augsburg and Constantinople.
Jaroslav Pelikan, The Spirit of Eastern Christendom (The Christian Tradition, volume 2).
Sobre o autor: O Reverendíssimo John W. Fenton é pároco da Igreja Ortodoxa de São Miguel em Whittier, Califórnia, e assistente do Vigário Geral do Rito Ocidental de Antioquia. Ele foi pastor luterano por 16 anos.
Publicado Originalmente: https://blogs.ancientfaith.com/orthodoxyandheterodoxy/2017/10/03/lutherans-greek-church/
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