Por Rev. Dr. Hermann Sasse
Quem lê os livros escritos sobre a história do dogma no século XIX e no inicio do século XX facilmente recebe a impressão de que, durante a Idade Média, a questão da Ceia do Senhor era apenas, ou principalmente, problema de reflexão teológica e de distinções escolásticas. Nada podia ser mais equivocante que essa ideia. Seria tão incorreto como explicar as catedrais da Idade Média em primeiro lugar como demonstração de espantoso conhecimento de matemática e física. Assim como a catedral na Idade Média foi construída para a celebração da missa e a adoração de Cristo como presente no sacramento, assim também o dogma eucarístico nesses séculos teve um aspecto bem prático.
Esse dogma não pode ser entendido sem a liturgia eucarística, e a devoção pessoal relacionada com sua doutrina. Pode-se ilustrar isso através de um exemplo. Quando Tomás de Aquino adoeceu no ano 1274, em sua última viagem de Nápoles a Lyons, onde sua presença no Concílio era urgentemente necessária para as negociações de união com os gregos, foi trazido à Abadia Cistercense de Fossa Nuova - um homem que se encaminhava para a morte sem ter completado os cinquenta anos de idade.
Ao se aproximar seu fim, recebeu o sacramento com as palavras:
"Eu te recebo, ó preço do resgate da minha alma. Por amor a ti estudei, passei noites em vigília e labutei. Foste objeto do meu ensino e da minha pregação. Nada disse contra ti. Se, entretanto, eu disse alguma coisa errada sobre este ou outros sacramentos, eu o submeto para correção à Santa Igreja Romana, em cuja obediência estou prestes a partir dessa vida."
Segundo outra fonte, que, no entanto, pode não estar isenta de elementos lendários, orou, depois de ter recebido o viático, com as palavras de seu grande hino eucarístico:
"Adoro-te devote / Latens Deitas / Quae sub his figuris / Vere latitas...", (Adoro-te devotadamente / Divindade oculta / Que sob estas formas / Verdadeiramente te ocultas...),
hino que sempre tem sido considerado como uma das mais grandiosas confissões de fé na presença real e que, como tal, ainda é citado, juntamente com outras duas orações eucarísticas de Aquino, por João Gerhard no último capítulo de seu "locus" "De coena Domini".
É como se o maior dos pensadores da Idade Média, na hora da morte, tivesse esquecido o que o mundo considera como a verdadeira obra de sua vida, sua poderosa síntese de fé cristã e filosofia aristotélica no maior sistema de pensamento medieval, e nada tivesse exceto o "unum necessarium", a fé em Cristo como é expressa neste hino que adora o Cristo oculto:
"In cruce latebat / Sola Deitas / Sed hic latet simul / Et humanitas / Ambo tamen credens / adque confitens / Peto quod petivit / Latro penitens." "Apenas Deus permanecia oculto à vista na cruz / Mas aqui está oculta também sua humanidade / e em ambos professando minha fé / Faço a mesma oração que fez o malfeitor penitente."
Esse é o outro lado do escolasticismo medieval, enquanto teologia verdadeira. Pois a teologia, em seu sentido mais profundo, não é apenas refletir sobre Deus, mas também refletir na presença de Deus; não apenas falar de Cristo, mas também falar a ele: "Tu foste o objeto de minha pregação e de ensino". Ninguém pode compreender os esforços feitos na Idade Média para entender o mistério da presença real, a não ser que se conheça esse aspecto secreto da teologia escolástica.
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Hermann Sasse. Isto é o meu corpo. Editora Concórdia, páginas 56-58
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