abril 30, 2017

Lei e Evangelho como Função Hermeneutica


Vilson Scholz

Introdução

Num documento intitulado Apologia da Confissão de Augsburgo, redigido por Filipe Melanchthon, em 1530, este confessor evangélico afirma que “aterrorizar e justificar e vivificar os aterrados são as duas obras principais de Deus nos homens. Nessas duas obras se divide a Escritura toda. Uma parte é a lei, que mostra, argüi e condena os pecados; a outra é o evangelho, isto é, a promessa da graça dada em Cristo. E esta promessa é repetida constantemente em toda a Escritura. Primeiro foi entregue a Adão, depois aos patriarcas; em seguida, foi ilustrada pelos profetas. Por último, foi pregada e apresentada por Cristo entre os judeus e espargida pelos apóstolos em todo o mundo”. 41 Trata-se de uma afirmação ousada: a Bíblia toda se divide nessas duas obras de Deus: aterrorizar e vivificar. Em outras palavras, a Bíblia é feita de duas mensagens básicas: lei e evangelho. 42 Qual é, na prática, a importância disso para o intérprete?

Algumas teses

Antes de responder esta pergunta, cabem algumas reflexões e afirmações sobre lei e evangelho. Em primeiro lugar, lei é, de forma bem simples, aquilo que Deus anuncia ou faz anunciar e que nos aterroriza, assusta, mata. Pode ser também o que Deus exige de nós. O evangelho é a mensagem que nos consola. É o anúncio daquilo que Deus fez, faz e ainda fará por nós. 

Na teoria, esta distinção é muito fácil. Até uma criança sente quando está ouvindo lei, ou quando está ouvindo o evangelho. Se alguma coisa depende de nós, nunca é evangelho. Por exemplo, e fazendo uso de uma comparação, se a mãe diz à sua filha, “se você for uma boa aluna, vou levá-la ao shopping”, isto é, no fundo, lei. Agora, se ela disser, como que de surpresa, “por ser a minha filha amada, vou levar você ao shopping”, o enfoque é outro. 43 A lei é antiga. Ela governou, não apenas o povo de Israel, mas governa todas as nações debaixo do Sol. Em Gálatas 4.8-11, Paulo diz: “Outrora, porém, não conhecendo a Deus, servíeis a deuses que, por natureza, não o são; mas agora que conheceis a Deus ou, antes, sendo conhecidos por Deus, como estais voltando, outra vez, aos rudimentos fracos e pobres, aos quais, de novo, quereis ainda escravizar-vos? Guardais dias, e meses, e tempos, e anos. Receio de vós tenha eu trabalhado em vão para convosco”. O que isso tem a ver com a lei? A conexão está na parte final, onde diz “guardais dias, e meses, e tempos, e anos”. Os cristãos gálatas haviam sido convertidos do paganismo ao evangelho. Haviam servido a deuses que, por natureza, não são deuses. Agora eles conheciam Deus, ou, como Paulo diz, mudando a ênfase (que passa a ser bem evangélica!), eles eram conhecidos por Deus. Guardar dias, isto é, dar importância a certos dias (algo que pode ser descrito como praticar as “obras da lei” do judaísmo) representaria uma volta aos mesmos “rudimentos fracos e pobres” que os haviam escravizado quando eram pagãos. Com isso Paulo, de forma bastante ousada, coloca o paganismo e a obediência à lei no mesmo patamar. 

Se acrescentarmos a isso o texto de Romanos 2.14 (“os gentios, que não têm lei, procedem, por natureza, de conformidade com a lei”), poderemos afirmar que a lei é, em seus termos gerais (mais ou menos como aparece expressa no decálogo), patrimônio de toda a humanidade. Sob este aspecto, pregar a lei, despertar a consciência das pessoas, fazer exigências, é algo comum a todas as religiões. Não há nenhuma novidade em ensinar e pregar a lei. Não é esta a obra própria da Igreja. Como já disse alguém, não é função do pregador melhorar a Terra, mas abrir as portas do céu. A lei nos prende à Terra; ela foi dada, em grande parte, ao menos na assim chamada “segunda tábua”, em função do próximo e nossa convivência com ele. Abrir as portas do céu, isso somente a boa notícia da fé em Jesus Cristo faz. 

A expressão técnica “lei e evangelho” é herança da Reforma do século XVI. Esta polaridade foi formulada e enfatizada pelos reformadores luteranos. 44 Os Pais da Igreja antiga em geral desconheciam essa polaridade lei-evangelho, pelo menos na teoria. Assim, os reformadores não puderam, neste caso, apelar para a história da Igreja, indicando que não estavam introduzindo nenhuma novidade na vida da Igreja. Neste particular, tudo que tinham ao seu lado (e isto não era pouco!) era o testemunho da Bíblia. Talvez alguém estranhe a formulação “lei e evangelho”. A rigor, na própria Bíblia há outras designações, que expressam a mesma polaridade: obras e fé, lei e Cristo, lei e Espírito, lei e graça. 

Segundo outro documento confessional do século XVI, 45 “em 2 Coríntios 3 Paulo mostra de maneira cabal e poderosa essa distinção entre lei e evangelho”. Claro, o texto de 2 Coríntios 3 tem implicações hermenêuticas. Agostinho achava que esse texto, especialmente o versículo 6, legitimava a distinção platônica entre sentido literal e sentido espiritual. No entanto, o texto não trata disso. “Letra”, naquele contexto, é outro nome para “lei mosaica”. E Espírito é outra maneira de falar da novidade do evangelho nos tempos do fim. 46 Na sequência, em 2 Coríntios 3, Paulo contrasta o ministério da morte e o ministério do Espírito (versículos 7-8), o ministério da condenação e o ministério da justiça (versículo 9). Em Moisés, há morte e condenação; em Cristo, o dom do Espírito e justiça.

Essa distinção entre lei e evangelho é tanto quantitativa quanto funcional. Por “quantitativo” se entende que é algo que pode ser quantificado. Em outras palavras, é possível, em alguns lugares da Bíblia, marcar o texto com uma cor, para indicar que é lei, e marcar outras passagens com outra cor, para indicar que é evangelho.

Em Salmo 118.18, “o SENHOR me castigou severamente, mas não me entregou à morte”, a primeira metade é lei; a segunda metade (em itálico), evangelho. Em Salmo 119.28, “a minha alma, de tristeza, verte lágrimas; fortalece- me segundo a tua palavra”, a primeira parte é dita sob a perspectiva da lei; a segunda (em itálico), sob a perspectiva do evangelho. Romanos 3.23 (“todos pecaram”) é lei. João 3.16 (“Deus amou o mundo”) é evangelho.

Mas existe também a distinção funcional. Isso significa que um mesmo texto pode funcionar de dois jeitos, ou seja, pode tanto ser lei como evangelho. O exemplo clássico é a história da paixão e morte de Cristo. Aquela é a mensagem da cruz. Não poderia haver evangelho mais claro. No entanto, em geral essa narrativa é ouvida como lei. Sempre que a resposta é “como o ser humano é mau e cruel”, ficando implícito que algo como aquilo que aconteceu com Jesus não deveria ter sido feito, a história terá sido ouvida como lei.

Como saber se é lei ou é evangelho, no caso da história do sofrimento de Jesus, relatado nos quatro Evangelhos? A rigor, o texto é um só. O conteúdo (a semântica, para usar o termo técnico) não muda; o que muda é o impacto do texto (ou, para ficar com o termo técnico, a pragmática). No fundo, quem conta a história não tem como controlar o efeito ou garantir que a mesma seja ouvida como evangelho, e não como lei. Mas apenas o ouvinte poderá dizer se ouviu a história como lei ou como evangelho.

O mesmo vale, também, para a lei em seus diferentes usos. Falamos do tríplice uso da lei: freio, espelho e norma. Em seu primeiro uso (como freio), a lei, em seu sentido amplo, impede que o mundo se torne caótico. Em seu segundo uso, como espelho (nós usaríamos hoje, talvez, a metáfora do microscópio), a lei revela ao homem a amplitude de seu pecado. E em seu terceiro uso, como norma, a lei tem um papel a cumprir na vida do cristão. Especialmente no caso do segundo e do terceiro usos, o pregador ou professor não tem controle sobre a lei. A rigor, só Deus é Senhor do tríplice uso da lei. O pregador pode até tencionar um terceiro uso da lei, orientando seus ouvintes quanto à vivência da fé cristã, mas o efeito pode ser de segundo uso (espelho). Isso se percebe quando os ouvintes, depois de ouvirem a pregação, sentem ou dizem: “Hoje, sim! Hoje a coisa foi séria (especialmente para os outros)!”.

Lei e evangelho têm em vista o objetivo de salvação. O anúncio da lei não é um fim em si, pois está a serviço do evangelho (Cristo), que é o centro de toda a Escritura (como o próprio Cristo deixou claro em Lucas 24).

Exemplos bíblicos

Essa polaridade lei-evangelho aparece tanto em textos bíblicos específicos como também em episódios ou páginas da história do povo de Deus. Filipe Melanchthon, na Apologia, aponta para os exemplos de Adão, Davi, e o ministério de Jesus. 47 Mas esta lista pode ser ampliada. Comecemos, todavia, com Adão.

Melanchthon escreve: “Adão, depois do pecado, é repreendido e aterrorizado; foi a contrição. Depois, Deus promete graça, fala da semente futura pela qual será destruído o reino do diabo, a morte e o pecado. Aí oferece a remissão dos pecados. Essas são as partes principais. Pois, ainda que a pena seja acrescentada posteriormente, essa pena, todavia, não merece a remissão do pecado”. 48 Na sequência, seria possível dizer que, a rigor, a história do homem deveria ter terminado em Gênesis 3, ou com o dilúvio, ou no episódio da torre de Babel (Gênesis 11). Mas, não. Em Gênesis 12, Deus abre um novo capítulo, o capítulo da graça. Como disse alguém, “Gênesis 12 é o grande milagre da graça de Deus abrindo um caminho onde não há caminho que o homem possa ou mesmo queira encontrar”. 49

Na Apologia, Melanchthon cita o exemplo de Davi, o qual, “censurado por Natã, e, aterrorizado, diz: ‘Pequei contra o Senhor’. É a contrição. Depois ouve a absolvição: ‘O Senhor te perdoou o teu pecado; não morrerás’. Esta voz erige a Davi, e, pela fé, o sustenta, justifica e reanima. Também aqui se adiciona um castigo, mas esse castigo não merece remissão de pecados”. 50 A história de Israel, que vai de Deuteronômio ao final do livro de 2 Reis, é sombria. Somando tudo, parece que o resultado é nada. No entanto, olhando com atenção, nota-se que a mensagem dessa história é, apesar de tudo, evangelho.

O Deus de juízo é – por incrível que pareça – o Deus a quem o povo rebelde e infiel pode se voltar e a quem precisa se dirigir.

Em Oseias, um profeta cuja vida é uma parábola de como “a Terra se prostituiu, desviando-se do SENHOR” (1.2), lei e evangelho aparecem lado a lado, em Oseias 1.9-10: “Disse o SENHOR a Oseias: Põe-lhe o nome de Não-Meu-Povo, porque vós não sois meu povo, nem eu serei vosso Deus. Todavia, o número dos filhos de Israel será como a areia do mar, que se não pode medir, nem contar; e acontecerá que, no lugar onde se lhes dizia: Vós não sois meu povo, se lhes dirá: Vós sois filhos do Deus vivo”. Em Ezequiel 16, Jerusalém, a cidade infiel, a cidade prostituta, a irmã de Sodoma, é confrontada com o juízo da lei: “Jerusalém, eu a tratarei como merece, pois você quebrou as suas promessas e não respeitou a aliança” (Ezequiel 16.59, NTLH). Mas, no versículo imediatamente após, aparece o “mas” do evangelho: “Mas eu manterei a aliança que fiz com você na sua mocidade e farei com você uma aliança que durará para sempre”  Ezequiel 16.60). E Deus continua: “Renovarei a aliança que fiz com você, e você ficará sabendo que eu sou o SENHOR. Eu perdoarei todas as coisas más que você fez...” (Ezequiel 16.62 63).

O profeta Habacuque, cercado de maldade, injustiça, destruição e violência, vendo o povo de Deus ser ameaçado pelos babilônios (lei), sabe que Deus sairá para salvamento do seu povo (evangelho, em Habacuque 3.13). Ele confessa que Deus é a garantia do futuro, naquela que é uma das mais belas passagens da Bíblia: “Ainda que a figueira não floresça, nem haja fruto na vide; o produto da oliveira minta, e os campos não produzam mantimento; as ovelhas sejam arrebatadas do aprisco, e nos currais não haja gado, todavia, eu me alegro no SENHOR, exulto no Deus da minha salvação. O SENHOR Deus é a minha fortaleza, e faz os meus pés como os da corça, e me faz andar altaneiramente” (Habacuque 3.17-19).

Provérbios, que faz parte da literatura de sabedoria, talvez não seja um candidato ideal para a articulação da polaridade lei-evangelho. No entanto, à luz do lema “o temor do SENHOR é o princípio da sabedoria”, é possível afirmar que a sabedoria do sábio depende tão pouco dele próprio quanto a justiça do justo depende daquilo que ele faz. Em 30.2-3, Agur confessa: “sou demasiadamente estúpido para ser homem; não tenho inteligência de homem, não aprendi a sabedoria, nem tenho o conhecimento do Santo”. No entanto, muito antes de se recolher à sua insignificância, o sábio conhece a saída. Em Provérbios 3.5, diz: “Confia no SENHOR de todo o teu coração e não te estribes no teu próprio entendimento”. A parte final é lei; a parte inicial, é um convite evangélico. O mesmo tema se repete em Provérbios 22.19: “Para que a tua confiança esteja no SENHOR, quero dar-te hoje a instrução, a ti mesmo”.

A polaridade lei-evangelho aparece claramente no ministério de João Batista. Ele chama a todos de “raça de víboras” (Lucas 3.7), o que, com certeza, não tem nada de evangelho. Mas ao mesmo tempo anuncia um batismo de arrependimento para remissão de pecados e aponta para aquele que é mais poderoso do que ele e batiza com o Espírito Santo que dá vida e que é o dom dos tempos messiânicos (Mateus 3.11).

Filipe Melanchthon tem um exemplo do ministério de Cristo, especificamente Lucas 7. Ele escreve: “A mulher pecadora vem a Cristo chorando. Por essas lágrimas se conhece a contrição. Depois ouve a absolvição: ‘Perdoados são os teus pecados; a tua fé te salvou; vai-te em paz’. Esta é a segunda parte do arrependimento, a fé, que a encoraja e consola”. No Evangelho de João, o mundo que é dominado por aquele que é o pai da mentira e homicida desde o princípio (João 8.44) é o mundo amado por Deus (João 3.16). Lei e evangelho são claramente articulados em Atos 4.11-12: “Este Jesus é pedra rejeitada por vós, os construtores, a qual se tornou a pedra angular. E não há salvação em nenhum outro; porque abaixo do céu não existe nenhum outro nome, dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos”. Aqui, as afirmações itálico são tanto lei quanto evangelho. Dizer que não há salvação em nenhum outro é lei, pois exclui todos os outros pretensos salvadores. Mas, ao mesmo tempo, está implícito que há um nome pelo qual importa que sejamos salvos, o nome de Jesus. E isso é, com certeza, uma boa notícia.

O livro de Tiago parece, à primeira vista, um texto marcado por ensino ético, típico de lei. Mas, ainda assim, há também momentos em que transparece a polaridade lei-evangelho, como, por exemplo, quando contrasta a morte que resulta de nossos desejos (Tiago 1.15) com as boas dádivas que recebemos do alto, do Pai das luzes (1.17), ou quando contrasta a sabedoria terrena, animal e demoníaca (Tiago 3.15) com a sabedoria lá do alto (3.17).

E, para mostrar que essa polaridade perpassa a Bíblia, um exemplo de Apocalipse. Quando João chora muito, porque ninguém foi achado digno de abrir o livro (Apocalipse 5.4), isto é lei. Mas o evangelho não tarda. Em 5.5 é dito: “Não chore. Olhe! O Leão da tribo de Judá, o famoso descendente do rei Davi, conseguiu a vitória e pode quebrar os sete selos e abrir o livro”.

A importância da distinção

A distinção entre lei e evangelho é importante como exercício hermenêutico ou interpretativo, conforme exemplificado acima. No entanto, é muito mais importante, é de vital importância, na hora de pregar e ensinar a palavra de Deus. Faz-se essa distinção entre lei e evangelho, não pelo prazer de encontrar esse tipo de polaridade, mas para que o evangelho soe como evangelho. O normal é que se encontre confusão, isto é, não distinção, entre lei e evangelho, quando não se escuta lei pura. Quando há confusão ou mistura entre lei e evangelho, o que resulta não é um meio-termo, algo como “lelangelho”, mas o que resulta é pura e simplesmente lei. Cabe aos mensageiros da fé cristã fazer essa distinção entre lei e evangelho, para que o evangelho seja ouvido como evangelho. Se a Igreja e seus pregadores não fizerem isso, o mundo está perdido. 

Paulo exorta Timóteo, em 2 Timóteo 2.15, a “ensinar corretamente a palavra da verdade” (NTLH). 51 Literalmente, o verbo grego usado (“orthotoméo”) sugere a imagem ou figura de “cortar em linha reta”. Este “cortar” de forma correta ou ensinar corretamente implica fazer a distinção entre lei e evangelho.

Segundo o Dr. Carl F. W. Walther, no clássico Lei e Evangelho, até uma criança aprende a distinção entre lei e evangelho. Em outras palavras, não é tão difícil saber o que é lei e o que é evangelho. A aplicação prática ou o uso na vida é que apresenta dificuldades que não se consegue superar pelo simples raciocínio. Essa distinção precisa ser ensinada sempre de novo pelo Espírito Santo na escola da experiência. Em outras palavras, a distinção não é estática, fossilizada, um bem que a igreja possui, mas é algo dinâmico, algo que a Igreja recebe sempre de novo, na escola da experiência, isto é, na escuta da palavra de Deus e na sua apropriação pela fé. Como diz Gerhard Ebeling, “a distinção entre lei e evangelho seria fácil, caso se tratasse dum conhecimento teórico que, uma vez adquirido, estivesse disponível como saber”. 52 E evangelho significa propriamente distinção de lei e evangelho, o que equivale a dizer que, sem a distinção, o evangelho não será evangelho.

Resumindo: O que é lei, na Bíblia, deve ser explicado e entendido como lei, e o que é evangelho deve ser explicado e entendido como evangelho. Se a Bíblia toda é entendida e explicada como lei, não haverá instrumento para o Espírito criar a fé em Cristo e como resultado não haverá consolo contra os terrores da lei. Se a Bíblia toda é explicada e entendida como evangelho, não haverá instrumento para o Espírito convencer o homem de seu pecado e mostrar-lhe sua necessidade do Salvador, enfraquecendo, desse modo, a força do evangelho.

Os limites da distinção, ou seja, o que ela não pode fazer

A ênfase na distinção entre lei e evangelho se baseia na convicção de que as Escrituras Sagradas são cristocêntricas e que seu objetivo central é tornar os homens sábios para a salvação pela fé em Cristo Jesus. Enquanto o intérprete não tiver falado de Cristo, a interpretação ainda não terá chegado ao seu final.

Isso não significa, porém, que a distinção entre lei e evangelho é princípio hermenêutico geral a ser aplicado a cada texto da Escritura para descobrir seu significado. Em outras palavras: o processo interpretativo não se resume a fazer distinção entre lei e evangelho. Ainda é preciso examinar de perto o texto, estar atento ao contexto, relacionar outros textos bíblicos etc. Agora, toda interpretação, para ser completa, precisa incluir este componente de lei-evangelho. Em especial quando se trata do assunto central da Bíblia, a salvação, a relação entre fé e obras, é crucial fazer essa distinção.

Há mais um elemento que pode ser acrescentado: pensar em termos de lei-evangelho ajuda a evitar que a exegese bíblica se torne fragmentária e deturpada.

Como dizemos, há momentos em que não conseguimos enxergar a floresta, de tantas árvores que temos pela frente. Pensar em termos de lei-evangelho leva a ver o quadro maior, e mantém a exegese fiel ao conteúdo cristológico e ao objetivo soteriológico da própria Bíblia.

Conclusão

A mensagem da Bíblia pode ser dividida em lei e evangelho. É fundamental fazer a distinção (sem que se faça uma indevida separação) entre essas duas palavras, para que a lei seja ouvida como lei, e o evangelho seja ouvido como evangelho. Sem essa distinção, tudo que se ouve é lei. Mas é fundamental, para a salvação, que se ouça a boa nova do evangelho. Assim sendo, só conclui a tarefa de interpretação de um texto bíblico quem pode dizer: “neste texto, o evangelho é o que segue”, indicando do que se trata.

Notas:

| | 41 Apologia XII, 53 – Livro de Concórdia, p. 199-200. A Apologia é um dos documentos confessionais da Igreja Luterana. O Livro de Concórdia reúne todos os documentos confessionais do século XVI.
| | 42 Num escrito intitulado “Seven Theses on Reformation Hermeneutics” (Sete Teses sobre a Hermenêutica da Reforma), Martin Franzmann contrasta esta ênfase luterana com outras ênfases, que, segundo ele, não estão, em si, erradas, mas são incompletas. Um exemplo é a ênfase na soberania de Deus. É uma ênfase bíblica válida. Deus é soberano, tanto em juízo quanto em amor. É uma ênfase luterana também. No entanto, dizer que Deus é assim ou assado não é tudo, pois a Bíblia diz mais. Ela diz que Deus está agindo. Isso sugere uma segunda ênfase, muito propalada na segunda metade do século XX: Deus age. A vantagem desta ênfase é que mostra a diferença entre o Deus de Abraão, Isaque e Jacó (um Deus que se revela) e o “deus dos filósofos e sábios”, que é um deus distante e inativo. Entretanto, dizer que Deus está sempre pronto a agir ainda não diz tudo que a Bíblia requer que se diga, a saber, que ele quer agir em você, por meio de lei e evangelho.
| | 43 No mais das vezes, a mãe talvez dissesse, resignada: “Está bem ... vou com você ...”
| | 44 Reformadores não luteranos provavelmente enfatizariam a sequência evangelho-lei.
| | 45 A Fórmula de Concórdia, na Declaração Sólida, Artigo V, seção 26.
| | 46 Na verdade, em 2 Coríntios 3.6, Espírito deveria ser grafado com inicial maiúscula.
| | 47 Apologia da Confissão de Augsburgo, Artigo XII, 53-57.
| | 48 Livro de Concórdia, p. 200.
| | 49 Martin H. Franzmann, “Seven Theses on Reformation Hermeneutics”, Concordia Theological Monthly 40 (1969), p. 240.
| | 50 Livro de Concórdia, p. 200.
| | 51 A tradução de Almeida fala em “manejar bem a palavra da verdade”.
| | 52 Ebeling, Gerhard. O pensamento de Lutero. São Leopoldo: Sinodal, 1986, p. 91.

FONTE:

Scholz, Vilson Princípios de interpretação bíblica / Vilson Scholz. – Canoas : Ed. ULBRA, 2010. 160 p.

AUTOR

Vilson Scholz possui graduação em Teologia pelo Seminário Concórdia (1978), Mestrado (1981) e Doutorado (1993) em Teologia pelo Concordia Seminary de St. Louis, EUA. Atualmente, é membro do corpo editorial da The Bible Translator. Tem experiência na área de Teologia, com ênfase em Teologia Bíblica, atuando principalmente nos seguintes temas: 2 Coríntios 3,4-18, exegese de 2 Coríntios 3.

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