março 06, 2019

O jejum e a abstinência no luteranismo


Iniciamos o período quaresmal. Com a quaresma surgem as diversas perguntas sobre a questão do jejum e da abstinência. Ainda vale? Não é prescrição da Igreja Romana? O que os luteranos tem a ver com isso? Estes são questionamentos frequentes, seja por parte de não luteranos ou por luteranos que há muito se afastaram destas práticas históricas de penitência e oração.

Você sabia que nosso Senhor Jesus Cristo pressupunha que Seus discípulos jejuariam, assim como eles orariam? Jesus elogiou o jejum como um ato privado de humildade e devoção a Deus (cf. Mateus 6.16-18). Note particularmente que ele diz: “Quando jejuarem...” não “ Se jejuarem ...” Dê também uma olhada em Mateus 9.14-15. Os primeiros cristãos jejuaram (At 13.2-3; 14.23). Por que um cristão do século XXI não poderia fazer o mesmo? 

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O problema é que somos, como cultura e sociedade, glutões. Afinal, somos a sociedade do "consumo". Nós temos necessidade de consumir cada vez mais e mais. Analisamos os jejuns exigidos no catolicismo romano e na ortodoxia oriental e criticamos com razão a imposição de tais regras como contrárias à liberdade do Evangelho que temos, mas depois, novamente, usamos isso como uma desculpa para não jejuar e para rotular de legalista qualquer um que se proponha a jejuar. 

Ao nos aproximarmos agora do início da Quaresma, é bom lembrar que a Quaresma tem sido ao longo da história da Igreja, um período que envolve o jejum. O nome alemão para Quaresma usado historicamente no luteranismo é fastenzeit, “tempo rápido”. A disciplina espiritual do jejum sempre foi parte do luteranismo histórico, mas como em muitas outras áreas da nossa vida da igreja, o desejo de "se parecer" com o restante do protestantismo levou esta prática a cair em desuso entre nós. Lutero também pressupõe que o jejum seja prática entre os membros da Igreja da Reforma como preparação para receber a Eucaristia, pois no Catecismo Menor ele escreve: “Jejuar e preparar-se corporalmente é, sem dúvida, boa disciplina externa.” Certo que ele vai dizer que verdadeiramente digno e bem preparado é aquele que tem fé. No entanto, as coisas não estão em oposição aqui, elas se complementam. Só recentemente a confiança em Cristo tem sido colocada em oposição à boa disciplina externa. Na Bíblia de Estudo da Reforma existe um ótimo artigo sobre jejum e acho que seja útil compreender um pouco mais sobre a prática do jejum e da abstinência para este período de quaresma. 

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Afligindo a alma

O calendário judeu moderno tem 28 dias de jejum, mas no Antigo Testamento Deus somente ordenou um jejum anual. Em Lv 16.29-31, Moisés deu a ordem de Deus: "afligireis a vossa alma" no Dia da Expiação (Yom Kipur). Em resposta à expiação do pecado de Israel, os israelitas devotos jejuavam da manhã até a noite do décimo dia do sétimo mês.

Antes do exílio para a Babilônia, os israelitas jejuavam em tempos de perigo iminente, luto, doença, ameaça de guerra, desespero e tristeza. Por exemplo, Ana não comia por causa do grande estresse causado pela sua infidelidade (1 Sm 1.7), e Davi jejuou depois de ficar sabendo da morte de Abner (2 Sm 3.35). Os líderes religiosos também decretavam períodos de jejum em tempos de grandes crises nacionais (cf. Jz 20.26; 2 Cr 20.3; Jr 36.9). Estes exemplos mostram que o jejum era uma expressão de tristeza e, mais importante ainda, uma expressão de arrependimento.

Excesso

Quando a fé é forte, Satanás se esforça em dobro. Enquanto Deus ama "o aflito e abatido de espírito" (Is 66.2), Satanás os ataca vigorosamente com tentações para cometerem excessos. Demos graças a Deus porque ele não deixou o seu povo indefeso em meio ao seu pecado. Em uma resposta de oração, Deus enviou Isaías para com veemência chamar o povo ao arrependimento e ajudá-los a entender o caráter verdadeiro do jejum como uma expressão de tristeza sobre o pecado e uma oportunidade para ter misericórdia de quem passa fome (Is 58.3-8).

Infelizmente, em vez de atenderem ao chamado de Deus, o povo continuou em sua atitude autocentrada e assim causou o exílio na Babilônia. Para o povo de Deus, o exílio babilônico e a destruição do primeiro templo por Nabucodonosor (587 a.C) foram um ponto crucial na história, comparado somente pela destruição romana do templo de Herodes (70 d.C). Como resultado do exílio, quatro novos jejuns foram acrescentados ao calendário judeu, cada um deles marcando uma data histórica importante até chegar ao exílio (Zc 8.18-19). Por exemplo, um jejum no quarto mês lamenta a invasão do muro externo de Jerusalém por Nabucodonosor (Jr 52.6-7). Um jejum no quinto mês lembra a queima do Templo de Deus e outros prédios (2 Rs 25.8-9), enquanto um jejum no sétimo mês marca o assassinato de Gedalias, que havia sido colocado como governador de Judá pelo rei da Babilônia (Zc 7.5). Finalmente, um jejum durante o décimo mês lembra o cerco de Jerusalém por Nabucodonosor (2 Rs 25.1). Esses jejuns serviam um propósito santo: eles lembravam os israelitas das coisas tristes que acontecem quando se negligencia a Palavra de Deus. Entretanto, com o tempo o jejum se tornou mais uma forma pela qual os israelitas abusavam da Palavra de Deus.

Na esperança de evitar outros cativeiros, estudiosos judeus examinaram os escritos de Moisés, procurando desesperadamente entender por que Deus os havia exilado. Eles se determinaram a aplicar a Lei com mais seriedade. O que se seguiu foi uma mudança fundamental em sua fé. Até hoje, muitas pessoas ainda acreditam que, se observarem todas as leis perfeitamente, elas obterão a salvação. O jejum foi de uma expressão de arrependimento a um apaziguamento compulsório de um código legalístico. Essa mentira desviou muitos e os fez passar a eternidade separados do Senhor, que deseja salvar a todas as pessoas (1 Tm 2.3-4).

O aparecimento de Cristo

Antes do aparecimento de Jesus, os fariseus exigiam que se jejuasse duas vezes por semana (Lc 18.9-12). Os essênios, grupo que se separou dos fariseus e que pode ter vivido em Qumran, centravam boa parte de sua vida no jejum. Para os infiéis, o jejum era uma coisa que se fazia para bajular Deus e obter o seu favor - um dever, obra ou lei. Mas para os fiéis, o jejum continuava sendo uma expressão  de arrependimento e reverência para com o Senhor, que os criara e prometia redimi-los. 

Depois do batismo de Jesus, ele foi ao deserto e jejuou por 40 dias e 40 noites (Mt 4.2). Este número lembrava a devoção de Moisés (Êx 24.18), o grande profeta Elias (1 Rs 19.8), e os 40 anos que Israel andou errante no deserto. Durante este jejum, Satanás repetidamente tentou Jesus, mas Jesus usou a preciosa Palavra de Deus para se defender.

O jejum e você

No sermão do monte, Jesus falou contra o jejum usado como um meio para se obter a salvação. Em vez disso, ele recomendou o jejum feito como um ato voluntário e particular de humildade diante de Deus (Mt 6.16-18). Tire alguns minutos agora para ler as palavras de Jesus e refletir sobre a sua própria devoção. Se você for como a maioria das pessoas, você pensa mais em fazer dieta do que em fazer jejum. É difícil imaginar jejuar por um dia inteiro. Certamente, Jejuar por 40 dias como Jesus fez depois do seu batismo está fora de questão para nós. No entanto, as palavras do nosso Senhor revelam claramente que o jejum deve fazer parte da vida de um cristão: Jesus disse "Quando jejuardes" (Mt 6.16) não "se jejuardes" (cf. Mt 9.14-15). Os primeiros cristãos jejuavam (At 13.2-4; 14.23). Por que um cristão no século XXI não deveria fazer o mesmo?

Quando você jejuar, deixe que as sensações de fome que o acometem lembrem você de orar. Use o tempo que você normalmente usaria para comer lendo a Palavra de Deus e meditando no evangelho de Jesus Cristo. Por meio de sua Palavra, o Senhor irá abençoar e alimentar você. "Então, romperá a tua luz como a alva, a tua cura brotará sem detença, a tua justiça irá adiante de ti, e a glória do Senhor será a tua retaguarda, então, clamarás, e o Senhor te responderá; gritarás por socorro, e ele dirá: Eis-me aqui" (Is 58.8-9)

Como você pode jejuar?

Que tal jejuar durante uma ou duas refeições antes de tomar a santa ceia? Use o templo extra para estudar a Palavra de Deus e cantar hinos sobre a santa ceia.

O jejum durante a quaresma pode ser uma oportunidade maravilhosa para lembrar-se da obediência perfeita de Cristo e do sacrifício dele pela sua salvação. O dinheiro não gasto em comida pode ser doado aos pobres. 

Você pode seguir a rotina a seguir para um jejum que dure um dia inteiro: (1) levante antes do nascer do sol e tome café; (2) examine-se a si mesmo como se faz antes de participar sa santa ceia; (3) ofereça sua vida a Deus em oração penitente; (4) prossiga normalmente com o seu dia, voltando a se alimentar depois do pôr do sol. 

Se você é diabético, o jejum pode ser perigoso. Consulte seu médico antes de tentar. Não use o jejum como dieta. Se não for possível abster-se de comida, considere abster-se de alguma outra coisa. Por exemplo, desligue a televisão e passe o tempo em oração e estudo da Palavra de Deus.

Bíblia de Estudos da Reforma, SBB, p.194-195

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