Por Denício Godoy
O presente trabalho visa apresentar de forma sucinta a definição teológica do bem-aventurado Dr. Martinho Lutero sobre a Igreja Cristã a partir da doutrina da justificação pela fé. Partindo da perspectiva da justificação presente na exposição do segundo artigo do credo apostólico do Catecismo Menor, podemos lançar um primeiro olhar para o terceiro artigo do Credo Apostólico e então compreendermos melhor o que Lutero propõe como Igreja Cristã, .
Na exposição do terceiro artigo do Credo, Lutero confessa:
“Creio que por minha própria razão ou força não posso crer em Jesus Cristo, meu Senhor, nem vir a ele. Mas o Espírito Santo me chamou pelo evangelho, iluminou com seus dons, santificou e conservou na verdadeira fé. Assim também chama, congrega, ilumina e santifica toda a cristandade na terra, e em Jesus Cristo a conserva na verdadeira e única fé. Nesta cristandade perdoa a mim e a todos os crentes diária e abundantemente todos os pecados, e no dia derradeiro me ressuscitará a mim e a todos os mortos, e me dará a mim e a todos os crentes em Cristo a Vida Eterna.” (Catecismo Menor).
Para Lutero, a Igreja é a portadora dos meios da graça. É através destes meios, palavra e sacramentos, que o Espírito Santo nos chama pelo Evangelho, ilumina com seus dons, santifica e conserva na verdadeira e única fé.
Segundo Oswald Bayer, a igreja
“não está ligada fundamentalmente a determinados lugares sagrados, templos sagrados, pessoas santas nem ritos sagrados, mas, por outro lado, ela tampouco é uma sociedade platônica, que só existiria como ideia, uma acusação que logo foi lançada contra os reformadores pelos adeptos da fé antiga (BAYER, 2007, p.185).
Bayer argumenta que, para Lutero, na Palavra está contido tudo que faz a Igreja ser igreja. “Ubi est verbum, ibi est Ecclesia”, onde está a Palavra, ali está a Igreja. Lutero afirma na obra Do Cativeiro Babilônico da Igreja que
“[...] a Igreja nasce da palavra da promessa, por meio da fé, e pela mesma é alimentada e conservada. Isto é, ela própria é constituída pelas promessas de Deus, e não a promessa de Deus por ela.” (LUTERO, 2016, p. 410).
Tudo o mais que Lutero entende por igreja é um desdobramento dessa centralidade da Palavra na vida da própria Igreja. Isto é, a Igreja não é uma teoria gnóstica e superior (igreja invisível) mas uma realidade que se manifesta de forma visível. Como a igreja se apresenta de forma visível? Poderíamos dizer que no pensamento de Lutero a palavra se sacramentaliza (i.e é entregue como perdão) na proclamação da igreja e na administração dos sacramentos.
O Espírito Santo chama pelo Evangelho
Como visto na afirmação do Catecismo Menor de Lutero, o Espírito Santo chama a todos por meio do Evangelho. Na sua carta aos romanos, São Paulo afirma que "a fé vem por ouvir a mensagem, e a mensagem é ouvida mediante a palavra de Cristo.” (Romanos 10:17 NVI). Na teologia de Lutero, a função da Igreja é proclamar a boa nova do Evangelho, de maneira que os homens creiam em Cristo e sejam justificados pela fé. A Igreja aponta para o segundo artigo do Credo.
A Confissão de Augsburgo em seu 5° artigo diz que
“Para conseguirmos essa fé, instituiu Deus o ofício da pregação, dando-nos o evangelho e os sacramentos, pelos quais, como por meios, dá o Espírito Santo, que opera a fé, onde e quando lhe apraz, naqueles que ouvem o evangelho, o qual ensina que temos, pelos méritos de Cristo, não pelos nossos, um Deus gracioso, se o cremos.”
E no artigo 7° nos deparamos com a seguinte afirmação:
“Ensina-se também que sempre haverá e permanecerá uma única santa igreja cristã, que é a congregação de todos os crentes, entre os quais o evangelho é pregado puramente e os santos sacramentos são administrados de acordo com o evangelho. Porque para a verdadeira unidade da igreja cristã é suficiente que o evangelho seja pregado unanimemente de acordo com a reta compreensão dele e os sacramentos sejam administrados em conformidade com a palavra de Deus. E para a verdadeira unidade da igreja cristã não é necessário que em toda a parte se observem cerimônias uniformes instituídas pelos homens. É como diz Paulo em Efésios 4: 'Há somente um corpo e um Espírito, como também fostes chamados numa só esperança da vossa vocação; há um só Senhor, uma só fé, um só batismo.'”
Santificados e conservados na verdadeira fé.
Note que no 7° Artigo, escrito por Melanchthon e subscrito por Lutero, encontramos a afirmação de que ensina-se – isto é, na Igreja Luterana – que sempre haverá e permanecerá uma única santa igreja cristã. Esta única santa igreja, explica o artigo da CA, é a congregação dos santos, entre os quais o evangelho é pregado corretamente e os sacramentos são administrados de acordo com o evangelho, de acordo com a instituição de Cristo. Isto nos coloca diante de uma qualificação que exclui muito da compreensão do protestantismo moderno de que as diferenças em questões como sacramentos (Batismo e Eucaristia) consistem em diferenças secundárias e irrelevantes. Para Lutero e os reformadores luteranos, é necessário que a palavra seja pregada corretamente. O artigo 7° fala do “evangelho pregado corretamente” e, a partir da teologia de Lutero como um todo, podemos deduzir a correta distinção entre lei e evangelho como um fator primordial para que isso ocorra. O artigo também sustenta que os sacramentos devem ser administrados conforme foram instituídos por Cristo. Com esta afirmação, por certo, estão excluídos os sacramentários, os romanistas e demais correntes teológicas que negam ou confundem a eficácia dos sacramentos.
Sendo assim, na compreensão de Lutero, Espírito Santo e igreja estão intimamente ligados. No Catecismo Maior encontramos a seguinte colocação de Lutero:
“Aprende, pois, a compreender esse artigo da maneira mais clara. Se perguntarem: que queres dizer com as palavras “Creio no Espírito Santo”?, podes responder: “Creio que o Espírito Santo me santifica, como seu nome indica”. Mas como ele o faz ou qual é a sua maneira ou meio para tanto? Resposta: “Por intermédio da igreja cristã, da remissão dos pecados, da ressurreição da carne e na vida eterna”. Pois, em primeiro lugar, ele tem uma congregação peculiar no mundo, congregação essa que é a mãe e que gera e carrega cada cristão mediante a palavra de Deus, que ele revela e prega. Ilumina e incende os corações para que a entendam, aceitem, a ela se prendam e nela permaneçam”. (LUTERO, 2012, p. 83)
Notamos aqui que Lutero pode perfeitamente falar da “mãe igreja” – no sentido de que a igreja é o meio pelo qual a palavra de Deus me alcança e gera a fé no coração. Nesta igreja o Espírito Santo nos santifica e ilumina com seus dons.
A Igreja vive pelo perdão.
Na Igreja, a portadora dos meios da graça, o Espírito Santo perdoa diária e abundantemente todos os pecados. Para Lutero, esta ação começa desde quando somos inseridos na comunhão da Santíssima Trindade. No Catecismo Menor Lutero confessa sobre o sacramento do Batismo:
“Opera a remissão dos pecados, livra da morte e do diabo e dá a salvação eterna a quantos creem, conforme dizem as palavras e promessas de Deus. Quais são estas promessas? São as que nosso Senhor Jesus Cristo diz no último capítulo de Marcos: 'Quem crer e for batizado será salvo; quem, porém, não crer será condenado'”.
A Igreja também é portadora do Ofício das Chaves, oficio através do qual o perdão dos pecados nos é comunicado individualmente e de forma audível:
“A confissão compreende duas partes: primeiro, que confessemos os nossos pecados; segundo, que aceitemos a absolvição do confessor como de Deus mesmo, sem duvidar de modo algum, mas crendo firmemente que por ela os pecados são perdoados perante Deus no céu.”
Um terceiro meio pelo qual Deus nos perdoa individualmente através da Igreja é o Sacramento do Altar que, segundo Lutero:
“É o verdadeiro corpo e sangue de nosso Senhor Jesus Cristo para ser comido e bebido, sob o pão e o vinho, por nós, cristãos, como Cristo mesmo o instituiu.”
“’Dado e derramado em favor de vós para remissão dos pecados’. Por estas palavras nos são dadas no sacramento remissão dos pecados, vida e salvação. Pois onde há remissão dos pecados, há também vida e salvação.”
Para Lutero, a Igreja vive pelo perdão dos pecados. “Unicamente Cristo é o cabeça da cristandade (Igreja). Ele age através do Evangelho pregado, do Batismo e da Ceia d o Senhor, os quais, portanto, são também os canais pelos quais a verdadeira Igreja se identifica. A tarefa da cristandade (Igreja) não é governar as pessoas, e sim levá-las ao arrependimento e anunciar-lhes o perdão de Deus.” (LUTERO, 2016, p. 199)
Referências Bibliográficas
BAYER, Oswald. A teologia de Martim Lutero. São Leopoldo: Sinodal, 2007.
LINDENBERG, Carter. História da Reforma. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017.
LUTERO, Martinho. Catecismo Menor. Disponível em: <http://catechism.cph.org/pt/> Acesso em: 01 jun. 2018, 15:16:05
LUTERO, Martinho. “Do Cativeiro Babilônico da Igreja”, In. Obras Selecionadas, v. 2. São Leopoldo: Sinodal e Porto Alegre: Concórdia, 2016.
LUTERO, Martinho. “A respeito do Papado em Roma contra o Celebérrimo Romanista de Leipzig”, In. Obras Selecionadas, v. 2. São Leopoldo: Sinodal e Porto Alegre: Concórdia, 2016.
LUTERO, Martim. Catecismo Maior. São Leopoldo: Sinodal e Porto Alegre: Concórdia, 2012.
MELANCHTHON, Phillip. “Confissão de Augsburgo”. In: Livro de Concórdia: As Confissões da Igreja Evangélica Luterana. – 6. Ed. – São Leopoldo : Sinodal; Porto Alegre : Concórdia, 2006.
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