As Confissões Luteranas não foram escritas no vácuo ou fora do espírito de qualquer parte. A Reforma Luterana não foi uma "revolta", como costumavam dizer os historiadores católicos, muito menos uma heresia. O que motivou a Reforma e as Confissões, quais foram seus frutos mais importantes e o seu legado permanente para nós que desejamos ser chamados de luteranos hoje? Qual foi o pano de fundo central de nossas Confissões, o contexto desses diferentes documentos que foram finalmente incorporados ao Livro de Concórdia? Uma leitura de nossas Confissões revelará que todos [estes documentos] surgiram de uma necessidade urgente de articular o Evangelho de Jesus e de ensinar e dar testemunho deste Evangelho. E qual é este Evangelho que incitou o maior e mais adequado despertar espiritual desde os dias dos apóstolos?
Em nossas Confissões (FC, DS, V, 20) lemos:
O Evangelho, propriamente, é doutrina que ensina que o homem deve crer a fim de obter de Deus o perdão dos pecados, a saber, que o Filho de Deus, Cristo Senhor nosso, tomou sobre si e carregou a maldição da lei, expiou todos os nossos pecados e por eles pagou, e que apenas por ele chegamos de novo a estar nas graças de Deus, alcançamos a remissão dos pecados pela fé, somos libertados da morte de todos os castigos do pecado e somos eternamente salvos
Esta declaração pode muito bem ser considerada uma das declarações mais importantes e formativas em nossas Confissões Luteranas. Por que? Porque é a mais completa e bela definição do Evangelho que se encontra nelas. E é disso que se trata nossas Confissões: o Evangelho! Nossas 24 grandes confissões luteranas foram escritas pelo bem do Evangelho. A Confissão de Augsburgo, os catecismos de Lutero, a Fórmula de Concórdia... não foram escritos somente para destruir ou corrigir os abusos na Igreja Romana, ou para defender a teologia luterana contra os ataques dos papistas, ou para perpetuar o espírito partidário. Estas Confissões foram impelidas pela fé no Evangelho, e amor por ele e a determinação de ensinar e confessar de acordo com as Escrituras.
Nesse sentido, nossas Confissões se assemelham ao Novo Testamento, Paulo e os outros apóstolos. Pregue, admoeste e diga tudo pelo bem do Evangelho (1 Coríntios 2.2, 9.16; João 20.31; 1 Pedro 5.12; 1 João 5.13). Essa foi a comissão de Cristo (Mateus 28.18-20; Marcos 16.15)
É notável quão consistentemente nossas Confissões enfatizam este tema central do Evangelho, como todas as suas discussões apoiam e conduzem a este tema da salvação mediante a graça através da fé em Cristo. Melanchthon, na Confissão de Augsburgo, agrupa todos os artigos de fé em torno da obra redentora de Cristo e a justificação pela fé nele. Quando os escritores de nossa Fórmula de Concórdia, posteriormente, tentaram resolver certas controvérsias sobre o pecado original, os poderes espirituais da vontade do homem antes da conversão, o terceiro uso da Lei (como um padrão para regular nossas vidas), ou mesmo os usos da igreja, deixam claro que sua preocupação com a doutrina correta sobre estes assuntos é melhorar o Evangelho e seu conforto para os pobres pecadores. Quando Melanchthon fala tão forte e com tanta firmeza contra o legalismo e a justiça por obras da Igreja Romana de seu tempo, é apenas porque "o Evangelho (isto é, a promessa de que os pecados são perdoados gratuitamente por amor de Cristo) deve ser mantido na igreja" (Ap, IV, 120). E quando ele insiste com tanta veemência que um pecador é justificado pela fé em Cristo, é porque negar ou minar esse grande fato "destrói completamente o Evangelho" (ibid.).
Martinho Lutero nos Artigos de Esmalcalde estrutura toda a doutrina cristã em torno da simples doutrina do Evangelho, a doutrina de Cristo e a fé nele. Isto é o que diz (AE, II, i):
O primeiro e principal artigo é o seguinte: Que Jesus Cristo, nosso Deus e Senhor, "morreu por causa das nossas transgressões e ressuscitou por causa da nossa justificação". (Romanos 4.25) Só ele é "o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo". (João 1.29)... Já que isso precisa ser crido, não podendo ser alcançado ou apreendido por nenhuma obra, lei ou mérito, segue-se que é claro e certo que somente esta fé nos torna justos, como diz São Paulo em Romanos 3, "Julgamos que o homem se torna justo sem obras da lei, pela fé" (Romanos 3.28), Também: "Para somente ele ser justo e justificar aquele que tem fé em Jesus" (Romanos 3.26). Desse artigo, a gente não se pode afastar ou fazer alguma concessão, ainda que se desmoronem céu e terra ou qualquer outra coisa... Sobre esse artigo fundamenta-se tudo o que ensinamos e vivemos contra o papa, o diabo e o mundo. Razão por que devemos estar bem certos disso e não duvidar.
Este é o espírito de Lutero e das Confissões Luteranas. Esta é a razão pela qual nossas Confissões, como as próprias Escrituras, são sempre contemporâneas e úteis. Se compartilharmos esse espírito evangélico, veremos quão úteis e emocionantes são nossas Confissões e as leremos com avidez e proveito.
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Fonte:
Getting into The Theology of Concord by Robert D. Preus
(St. Louis: Concordia Publishing House, 1977), pgs. 7-29.
Tradução: Denício Godoy
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